Da África ao Brasil: o caminho da poluição plástica que cruza o Atlântico e chega às praias do NE
Pesquisa inédita revelou que 78,5% dos resíduos que afetam o litoral nacional vieram em especial da República Democrática do Congo
Uma pesquisa inédita revelou que 78,5% da poluição plástica em praias do Nordeste veio da África. A grande maioria do lixo, formado principalmente por tampinhas de garrafa, é de produtos da República Democrática do Congo.
Trabalho realizado pelo Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC) ainda identificou que 15,7% dos resíduos eram brasileiro e os 5,8% restantes vieram da Índia, Emirados Árabes Unidos, China, Itália e Alemanha
Há duas semanas, a descoberta foi publicada na revista científica "Science of The Total Environment". A pesquisa foi feita pelo projeto Detetive do Plástico, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e CNPq.
A comprovação foi feita através de duas técnicas. Primeiro a chamada "auditoria de marcas", com a investigação sobre a quais empresas e marcas pertenciam aquelas embalagens. Para isso, os pesquisadores usaram o Google Lens e checaram os logotipos, textos e símbolos presentes nos plásticos. Em seguida, o laboratório usou softwares que simulam os percursos do plástico a partir da foz do Rio Congo, de acordo com a intensidade e direção das correntes marinhas do Oceano Atlântico Sul, e a possibilidade do transporte até a costa brasileira foi confirmada.
O modelo de dispersão usado na pesquisa simulou a trajetória de resíduos plásticos como se fossem 12 mil "itens virtuais". Durante um ano, o percurso foi monitorado, explica Tommaso Giarizzo, integrante do Labomar e um dos autores do artigo.
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— Esse modelo nos ajuda a entender como esses plásticos se movimentam ao longo do oceano, influenciados por vários fatores, principalmente as correntes marinhas, viajando milhares de quilômetros até chegarem às praias do Brasil considerando variações sazonais e espaciais.
As correntes do Oceano Atlântico Sul são as principais responsáveis por transportar esses resíduos através do oceano até a costa do Ceará. O vento também desempenha um papel importante, especialmente em determinados períodos do ano, ajudando a empurrar os plásticos em direção às praias.
A pesquisa confirmou que a poluição atingiu não só as praias do Futuro, de Jericoacoara e Porto das Dunas, onde houve a primeira coleta de resíduos para análise, mas toda a costa desde Alagoas até o Pará, incluindo Fernando de Noronha. Mas é possível que o impacto chegue até ao sul do Brasil e outros países, acrescenta o especialista.
— O que mais me surpreendeu foi que, apesar do modelo ter mostrado que apenas uma pequena parte dos resíduos plásticos chega ao Brasil, essa quantidade foi suficiente para causar uma poluição significativa nas nossas praias. Além disso, os resultados mostraram que os plásticos estrangeiros chegam em maior quantidade durante o segundo semestre do ano, quando a ação dos ventos é mais forte — disse Giarrizzo.
Origem do plástico
África: 78,5% - Desse total, 90,2% veio da República Democrática do Congo
Brasil: 15,7%
Ásia e Europa: 5,8%
Marcas de refrigerante, suco e água
A pesquisa analisou 1.062 resíduos de plásticos coletados no final de 2022 nas praias do Futuro, de Jericoacoara e de Porto das Dunas, todas no Ceará. Posteriormente, foi comprovada a mesma poluição em praias de Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Pará, além de Fernando de Noronha.
Foi possível realizar auditoria de marca, ou seja, havia logotipos ou informações das empresas em 591 itens. Destes, 464 (75%) eram de origem africana, e pertenciam a 31 marcas e 31 empresas-mãe.
A maioria dessas marcas e empresas era da República Democrática do Congo (RDC), seguidas por Costa do Marfim, África do Sul, Camarões, Angola, Nigéria e Gana. Somente três marcas, congolesas, foram responsáveis por 57,9% de todo o lixo: Festa Cola, um refrigerante (36,7%), Zest, um suco de manga (13,8%) e Swissta, marca de água mineral (7,4%).
Do total, 15 marcas encontradas pertencem à indústria de bebidas e outras 15 marcas são da indústria de cosméticos. As tampas de garrafas representavam 79,8% de todos os resíduos de marcas africanas.
— Sempre se afirma que o problema maior das nossas praias são os rios que trazem plásticos do continente para o mar, e o aporte local dos usuários da praia. Em parte, é verdade. Mas no litoral do Ceará, que é semiárido, com rios intermitentes e vazão reduzida em muitos meses do ano, o que estamos comprovando é que o aporte de plástico nas praias é associado a correntes marinhas. Estamos recebendo plásticos da África, mas nós também estamos exportando plástico para outros países, tudo é conectado — explica Giarizzo, que iniciou a pesquisa ao notar "tampinhas de garrafas com cores diferentes e plásticos com logotipos exóticos" enquanto passeava na Praia do Futuro.
No trabalho de simulação, com o modelo OpenDrift, foram usados três cenários, considerando hipóteses de liberações de partículas vindas da foz do Rio Congo ou da Praia do Futuro. As trajetórias virtuais foram monitoradas por 365 dias. As simulações indicaram que as primeiras partículas saídas do Congo levaram de cinco a seis meses para chegar à costa do Ceará. Depois, um volume maior chegou depois de 10 a 11 meses.
A conclusão é que a maior parte dos resíduos permanecia no próprio Atlântico Sul oriental e central. Mas, mesmo a porcentagem menor que alcançava o Brasil já foi suficiente para gerar uma poluição relevante nas praias brasileiras.
Depois da primeira coleta, o projeto Detetives do Plástico continuou o monitoramento e percebeu que plásticos estrangeiros, especialmente da República Democrática do Congo, chegam regularmente ao litoral, principalmente no segundo semestre do ano, quando a ação dos ventos é mais forte.
— É importante destacar que a República Democrática do Congo é o quarto país mais populoso da África, com quase 100 milhões de habitantes. Essa grande população, aliada a desafios no gerenciamento de resíduos e infraestrutura, contribui para a significativa geração de plástico, que acaba sendo transportado por rios e correntes oceânicas, impactando praias distantes, como as do Ceará — explica Giarrizzo, que acrescenta que boa parte desses plásticos possui composição química diferente da brasileira, o que os tornam mais difíceis e mais caros de serem reciclados.
Doenças podem ser transportadas
Em 2017, o governo congolês publicou um decreto para combater os impactos da poluição por plástico, proibindo a importação, produção, uso e venda de embalagens plásticas. Mas um artigo isentou os principais tipos de produtos plásticos consumidos no país, em particular garrafas de água potável e refrigerantes, que são os resíduos predominantes, apontou a pesquisa. A bacia do Rio Congo é uma das 14 principais bacias hidrográficas do mundo que juntas recebem mais de um quarto dos resíduos globais.
Quarto maior consumidor de plástico do mundo, o Brasil também é um contribuidor importante para a poluição oceânica. De 2010 a 2020, o país foi responsável pelo descarte de 940 mil toneladas de resíduos plásticos entre 2010 e 2020, segundo estudo do "Center for Ocean-Atmospheric Prediction Studies" (COAPS).
Além da poluição ambiental, a chegada de lixos estrangeiros é um risco para a saúde pública, alerta Giarrizzo.
— Esses plásticos têm características ambientais diferentes e podem transportar patógenos distintos do que temos no nosso país. Então pode gerar problemas de saúde. O assunto é bastante delicado — afirma o oceanógrafo, que cobra monitoramento constante no litoral brasileiro.
— Nós fazemos análises de balneabilidade, por que não avaliar também a presença de plásticos? Se o Brasil não entender a importância de realizar monitoramento das praias, fica difícil fazer medidas efetivas para tentar combater esse problema. É necessário saber a origem desse plástico.
Tratado global contra a poluição plástica
A poluição plástica é um problema global. Todo ano, aproximadamente 385 milhões de toneladas de plástico são produzidas. Como a sua reciclagem tem um custo muito maior que a sua produção original, apenas um percentual menor do plástico é reciclado no mundo.
Assim, o oceano acaba sendo o principal do destino, no final do ciclo. Estudos apontam que de 8 milhões a 12,7 milhões de toneladas de plástico chegam anualmente aos oceanos do planeta, e as projeções indicam que a quantidade pode triplicar até 2040.
Por isso, a ONU vem mediando um amplo tratado, de caráter vinculante, envolvendo governos de 175 países para combater a poluição plástica. Entre as principais medidas em análise estão a proibição do plástico descartável e a elaboração de critérios claros para garantir a reutilização e a reciclagem do material.
Maria Inês Tavares, diretora do Instituto de Macromoléculas (IMA) da UFRJ, que presta assessoria ao Itamaraty visando à participação brasileira no tratado, explica que várias são as fontes de entrada dos microplásticos no mar, desde o descarte inadequado, à lavagem de roupas sintéticas, além da degradação de lixo que já estava nos oceanos. A ação das ondas e a exposição à luz solar aceleram o processo de degradação e a fragmentação dos produtos plásticos maiores em partículas menores, destaca.
— Um compromisso firme com a reciclagem e a reutilização, aliado a uma educação ambiental abrangente, pode reduzir drasticamente a proliferação de resíduos plásticos e proteger nosso planeta para as futuras gerações - diz a cientista, que explica que o banimento total do plástico é praticamente impossível, devido à sua importância para diversos produtos. — Quando se levanta esta bandeira é mais voltado para os plásticos de uso único, os chamados descartáveis. A posição do Brasil é uma posição de busca do equilíbrio entre ações governamentais, indústria, reciclagem, reuso e a educação ambiental.