Decreto de Trump por fim da cidadania por nascimento afeta estrangeiros que vivem legalmente nos EUA
Ordem rejeita direitos consagrados há mais de 150 anos e vai além
O decreto assinado pelo presidente Donald Trump sobre o direito de cidadania por nascimento declara que bebês nascidos de muitos residentes temporários nos Estados Unidos — e não apenas aqueles que estão no país ilegalmente — devem ter a cidadania automática negada.
A medida rejeita os direitos consagrados na Constituição há mais de 150 anos e pode afetar até mesmo aqueles que buscam entrar e viver no país legalmente, segundo avaliação de especialistas.
Se os tribunais não bloquearem a ordem executiva, bebês nascidos de mulheres que vivem legalmente, mas temporariamente, nos Estados Unidos — como estudantes com visto de estudo ou mesmo trabalhadores contratados por empresas de tecnologia de ponta— não serão mais automaticamente reconhecidos pelo governo federal como cidadãos norte-americanos, caso o pai também não seja um residente permanente.
Embora assessores do presidente republicano tenham informado a repórteres na manhã de segunda-feira que a ordem se aplicaria a “filhos de imigrantes ilegais nascidos nos Estados Unidos”, a linguagem da ordem assinada por Trump, intitulada “Proteção ao significado e ao valor da cidadania americana”, vai muito além.
Para especialistas, o decreto é um “ataque chocante” contra civis que vivem no país legalmente.
— São pessoas que seguiram as regras e estão contribuindo para o país. Estamos falando de pessoas que estão conduzindo pesquisas inovadoras nos Estados Unidos. Pesquisadores, pessoas que estão aqui para ajudar — disse David Leopold, presidente da prática de imigração do escritório de advocacia UB Greensfelder, ao New York Times.
Trump 2.0
O decreto foi parte de uma série de ações autorizadas por Trump na segunda-feira para levar adiante sua visão de um país com muito menos imigração.
Apesar de afirmar que não tem “problemas com a imigração ilegal” e que até “gosta” dela, as novas ordens do republicano também restringiram as opções daqueles que buscam entrar legalmente no país.
Muitos dos assessores mais próximos do presidente, incluindo Stephen Miller, seu vice-chefe de Gabinete e arquiteto linha-dura de sua política de imigração, defenderam uma postura rígida sobre a cidadania por nascimento.
No primeiro mandato de Trump (2017-2021), Miller e outros assessores pressionaram para garantir que imigrantes não pudessem mais estabelecer o que chamam de “âncora” no país ao terem um bebê que automaticamente se torna cidadão americano.
Além de mirar na cidadania por nascimento, Trump também proibiu, na segunda-feira, asilo para imigrantes que tentam cruzar a fronteira sul.
Na sequência, ele ainda impôs uma suspensão indefinida do sistema legal de refugiados, encerrou vários caminhos legais para imigrantes implementados pela administração Biden e declarou a existência de uma “invasão” de imigrantes com o objetivo de dar ao governo federal amplos poderes para impedir a entrada de diversos grupos de pessoas.
Como isso poderia funcionar?
O decreto sobre cidadania por nascimento declara que esse direito será negado a bebês nascidos de pais que não sejam cidadãos ou residentes permanentes com green cards, incluindo mulheres que estejam “visitando com visto de estudante, trabalho ou turismo”, se o pai não for cidadão ou residente permanente legal.
Nesse caso, a ordem afirma que “nenhum departamento ou agência do governo dos EUA deverá emitir documentos que reconheçam a cidadania americana”.
Atualmente, a cidadania de bebês nascidos nos EUA é documentada por meio de um processo em duas etapas. Primeiro, o governo estadual ou territorial emite uma certidão de nascimento confirmando onde e quando ele ocorreu.
O documento não inclui nenhuma informação sobre o status de imigração dos pais do bebê. Depois, quando os pais solicitam um passaporte (em nome da criança), a certidão de nascimento que comprova que o bebê nasceu em solo americano é suficiente para provar a cidadania. Nenhuma outra documentação é exigida.
A ordem executiva do líder republicano indica que, em 30 dias, todas as agências federais serão obrigadas a confirmar o status de imigração dos pais antes de emitir documentos como passaportes. No entanto, não está claro como isso poderia ser colocado em prática.
Uma opção seria que as agências estaduais verificassem o status de imigração dos pais e incluíssem essa informação nas certidões de nascimento. Assim, quando os passaportes fossem solicitados, o governo federal poderia determinar quais bebês se qualificam para a cidadania automática.
Ainda assim, poderia levar anos para que os estados implementassem um sistema que verificasse o status de imigração de todos os pais — supondo que estivessem dispostos a fazê-lo.
O governo federal poderia estabelecer diretrizes sobre as informações necessárias, mas provavelmente caberia aos estados decidir como e se eles coletariam esses dados dos pais ao emitir uma certidão de nascimento.
Se os estados não reformularem o processo de emissão de certidões de nascimento, o governo federal poderia buscar impor a ordem de Trump exigindo que as pessoas que solicitassem passaportes apresentassem tanto a certidão quanto provas do status de cidadania dos pais no momento do nascimento.
Especialistas avaliam, contudo, que isso poderia ser complicado na prática, especialmente para pessoas com dinâmicas familiares complexas. Funcionários da Casa Branca não responderam a perguntas com pedidos de esclarecimentos.
Desafios legais
Acadêmicos da área jurídica e defensores da imigração disseram na terça-feira que ficaram surpresos com a amplitude do decreto.
Os advogados esperam que os juízes intervenham e o suspendam antes de sua entrada em vigor, prevista para 20 de fevereiro.
A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) entrou com uma ação contestando a ordem em um tribunal federal na segunda-feira à noite, apenas algumas horas após sua assinatura pelo presidente.
E na terça, procuradores-gerais de 22 estados e duas cidades processaram Trump para bloquear o decreto.
Decisões de qualquer juiz poderiam suspender temporariamente a ordem, desencadeando uma batalha legal que poderia terminar na Suprema Corte.
— É muito claro que eles pretendem reforçar sua agenda anti-imigrante, e que negar a cidadania a crianças nascidas nos EUA deve ser uma parte central do plano deles — disse Anthony Romero, diretor executivo da ACLU. — Se revogássemos a cidadania por nascimento, isso criaria um veículo legal para estigmas e discriminações intergeracionais, desmantelando o cerne desse grande experimento americano.
A cidadania por nascimento nos EUA foi implementada após a Guerra Civil para permitir que pessoas negras fossem reconhecidas como cidadãs.
A 14ª Emenda estabelece que todos “nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, e sujeitos à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do estado em que residem”. Antes de sua ratificação em 1868, nem mesmo homens e mulheres negros livres podiam se tornar cidadãos.
Trump, por outro lado, argumenta que sua administração tem o direito de interpretar o que os redatores da emenda pretendiam.
Seu decreto diz que a 14ª Emenda “nunca foi interpretada para estender a cidadania universalmente a todos os nascidos nos Estados Unidos”, algo que muitos juristas discordam.
Em seu documento legal, os advogados da ACLU dizem que o significado da 14ª Emenda já é uma questão resolvida há mais de 125 anos. Eles citaram um caso de 1898, United States v. Wong Kim Ark, no qual a Suprema Corte “rejeitou enfaticamente o último esforço para enfraquecer a cidadania por nascimento”.
— O decreto é certamente inconstitucional — disse Cecillia Wang, diretora jurídica nacional da ACLU. — É justo dizer que, se o tribunal apoiar a ordem executiva de Trump sobre cidadania por nascimento, perderá toda a legitimidade aos olhos do povo e dos livros de história.
Além da cidadania por nascimento
Trump indicou que planeja utilizar várias ferramentas para restringir aqueles que buscam entrada legal no país.
Ele há muito apoia mudanças na chamada regra de “encargo público”, que negaria a entrada nos EUA a potenciais imigrantes que provavelmente precisariam usar serviços públicos, como assistência alimentar ou habitacional.
O presidente também pode tentar restringir o direito de viajar para determinados grupos de pessoas. Em outra ordem executiva assinada na segunda-feira, Trump instruiu autoridades a desenvolver uma lista de países que estariam sujeitos a uma proibição de viagem semelhante à que ele impôs durante seu primeiro mandato.