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Deixem a Lei Maria da Penha em paz!

Projetos de lei pedem modificar a Lei Maria da Penha (LMP). Apresentados “a rodo” no Congresso Nacional, pretendem inibir a violência contra as mulheres, como se o problema estivesse na Lei e não nos limites à sua implementação.

Carla Batista fez mestrado na UFBACarla Batista fez mestrado na UFBA - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

Até o dia 12 de novembro, já havia no Congresso Nacional (CN) 224 propostas de alteração - de forma direta ou indireta - da Lei Maria da Penha. O número pode ter aumentado de lá para cá, já que parlamentares, por anseio em demonstrar protagonismo junto ao eleitorado feminino? por orientação de assessorias? por acatarem proposições vindas de diversos setores/instituições que, a partir de experiências localizadas, acreditam poder contribuir com o aperfeiçoamento da Lei? podem ter surgido outras proposições. As motivações, diante dos assustadores números e histórias de violência contra meninas e mulheres e dos casos de feminicídios divulgados, são as mais variadas, e acredita-se, cheias de boas intenções. Segundo o Atlas da Violência de 2019, em 2017 foram 4.963 feminicídios. O Anuário de Segurança Pública do mesmo ano registra, em 2018, 66 mil casos de violência sexual. Os números são realmente alarmantes!

É preciso reconhecer boa vontade, em parte dos casos. Em outras, nem tanto. Veja, por exemplo, projeto de lei (6010/2019, apresentado em 18/11) em que a senadora Kátia Abreu do PDT/TO propõe alteração da LMP “para determinar que, em casos de violência doméstica e familiar, a revogação da prisão preventiva e a liberação do agressor preso em flagrante por descumprir medida protetiva de urgência, dependerão de laudo psicológico que verifique o grau de probabilidade de o agressor reincidir contra a ofendida ou outras mulheres”. Ora, o agressor já é reincidente, não respeitou medida protetiva, mas um laudo psicológico pode eliminar esses antecedentes? E a proposta é totalmente contrária àqueles princípios que inspiraram a LMP, porque volta a tratar o problema como uma doença, que pode ser detectada por verificação psicológica. É uma proposição que nega, por princípio, a LMP. O que se pretende com ela?

Quem é que pensa realmente nas meninas e mulheres que estão sendo violentadas, que estão morrendo, que dedica tempo em se colocar no lugar delas, a dialogar com elas, para fazer essas sugestões de modificações? É bom lembrar que há pelo menos 40 anos organizações feministas que lidam com acolhimento e demandas nesta área costumam ser ouvidas pelo Congresso Nacional. Caso dos seminários sobre a LMP que organizam a Comissão Mista de Combate à Violência contra a Mulher do CN. Este foi o caso também da LMP, quando recepcionada no CN a partir de uma proposta de lei apresentada pelo Consórcio de ONGs, formado por feministas da área jurídica, que ouviu mulheres em audiências públicas nos Estados. O mesmo aconteceu quando foi criada a Comissão Parlamenetar Mista (CPMI) de Inquérito que investigou a violência contra as mulheres em 2011. Muita gente foi ouvida. Não foi o caso da derrubada do veto presidencial à notificação compulsória da rede pública de saúde à polícia, o que pode inibir que mulheres em situação de violência procurem cuidados de saúde.

Poderíamos dizer que a LMP é mais falada que conhecida. Você, por exemplo, já se deu ao trabalho de lê-la com atenção? Algumas observações muito importantes sobre a Lei: o seu caráter não é penal ou punitivista, mas de proposição de uma política pública na qual as ações de prevenção e assistência são prioridade. A Lei não criou nenhum crime novo, mas priorizou a formação de servidores públicos para atendimento aos casos de violência contra as mulheres de forma qualificada, assim como medidas protetivas para garantir a vida da mulher. A mídia tem uma grande parcela de responsabilidade ao reduzir a LMP a uma lei que prende marido que bate em mulher, ao invés de reforçar os seus aspectos mais importantes: de prevenção, proteção, acolhimento e contribuição para que a situação de violência seja superada.

Os maiores problemas encontrados para a sua efetivação não estão na Lei em si, mas na forma como as instituições oferecem respostas, a partir da interpretação que fazem da Lei. São insignificantes os números de centros de referência implantados no país. Estes, que deveriam ser os espaços adequados para receber e acolher a mulher em situação de violência. Há um equívoco em esperar que o papel do Sistema de Justiça e Segurança Pública seja o mesmo dos centros de referência - de responsabilidade do poder executivo - ainda que lhes caiba acolher as mulheres de forma humanizada. A lógica de proteção também se quebra quando não são criados os juizados previstos na Lei com competência para julgar as questões cíveis (divorcio, guarda dos filhos, alimentos etc) e penais. São milhares de inquéritos arquivados e processos que não andam, dando às recorrentes um sentimento de impotência e descrédito nas instituições.

Encontram-se barreiras para acompanhar o orçamento público em série histórica, por causa das modificações que são implantadas a cada novo governo e que, no atual, dificultam sobremaneira a visibilidade na destinação dos recursos, insuficientes para políticas que concretizem direitos das mulheres.

Ficam algumas perguntas aos/às parlamentares empenhados/as em mudar a LMP: na votação anual da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária, observam e atuam para definir recursos para políticas de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres? Como podem contribuir para que esses dados estejam apresentados de forma transparente, facilitando o monitoramento e cobrança por parte da sociedade civil organizada? Como podem reverter a proibição do debate sobre gênero nas escolas, fundamental para a formação de novas gerações comprometidas com o fim da violência?

Como o sistema de justiça e o poder legislativo podem contribuir para impedir que o executivo exerça o seu poder insuflando e legitimando todo o tipo de violência contra as mulheres? ainda que queira aparecer como fazendo o contrário.

A LMP nasceu de mobilizações sociais, foi discutida pelo país afora. Assim também, na CPMI da violência contra as mulheres, indicativos de novas propostas de lei foram apontados a partir de levantamentos e amplos debates. Propostas estas que estão com dificuldade pra andar no CN. Porque uma “força tarefa” não se dedica à aprovação destas propostas antes de mais nada? Mandatos comprometidos com a democracia precisam atuar a partir do diálogo permanente com a sociedade e com os movimentos sociais. Não relegar a dor das mulheres, mais uma vez, ao silêncio. Contribuir com a implementação da LMP não é necessariamente mexer em seu texto, mas fazer com que a voz das mulheres se faça ouvir na dimensão das decisões legislativas.

*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora popular. Mestra em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA. Militante feminista, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Publicou em 2019 o livro: Ação Feminista em Defesa da Legalização do Aborto: Movimento e Instituição, pela Annablume Editora.


*A Folha de Pernambuco não se responsabiliza pelo conteúdo das colunas

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