Demora para invasão terrestre em Gaza cria atrito entre cúpula militar e governo de Israel
Acuados por pressões internas e externas, Forças Armadas e classe política tentam realinhar discurso após divergências sobre plano de entrar no enclave palestino chegarem a público
Quando Israel convocou mais de 300 mil reservistas, impôs um "cerco total" à Gaza e começou uma campanha intensa de bombardeio — que ainda não cessou, 18 dias após o ataque terrorista lançado pelo Hamas — todas as movimentações em solo e declarações de autoridades políticas apontavam que uma invasão por terra do enclave palestino estava na iminência acontecer. Sem nenhum avanço comparável à promessa inicial, a demora para a operação terrestre em larga escala se tornou um foco de tensão entre a cúpula militar e do governo israelense, enquanto pressões internas e externas não param de chegar a medida que o conflito se aprofunda.
O mal-estar entre as Forças Armadas e o gabinete do premier israelense, Benjamin Netanyahu, excedeu o círculo interno e chegou a público por meio de declarações públicas à imprensa do país. No domingo, o porta-voz militar Daniel Hagari afirmou, durante uma entrevista televisionada, que o Exército esperava apenas pela ordem da liderança política para invadir Gaza, dando a entender que do ponto de vista operacional, tudo estaria pronto. Fontes militares citadas em matérias de jornais locais também demonstraram insatisfação com a espera, em uma frente de preocupação para o governo.
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A pressão não passou despercebida e ecoou entre a classe política, alinhada em uma posição que beira a unanimidade com relação à eliminação do Hamas. O líder do Shas, Arie Deri, aliado antigo de Netanyahu (com quem divide uma série de pendências com a justiça israelense) e que participa como observador do gabinete de guerra formado após o ataque terrorista, saiu em defesa da liderança política e empurrou parte da responsabilidade pela falta de uma resposta mais rápida por terra a um despreparo das Forças Armadas.
— Todos concordam com o objetivo, que é que o Hamas não continue a existir, não em um contexto governamental ou operacional — disse Deri em uma reunião do Shas no Knesset, de acordo com o registrado pelo Times of Israel. — Mas é preciso notar que não havia um plano [para uma invasão terrestre] anteriormente. Estamos preparando isso em meio aos combates. Não é como se o Exército estivesse pronto e o escalão político só precisasse decidir.
A fala de Deri coincidiu com relatos da mídia americana de que o Pentágono teria enviado para Israel o general James Glynn, especialista em guerra urbana e que atuou no combate ao Estado Islâmico e serviu em Fallujah, no Iraque, para ajudar as forças israelenses a planejar a próxima fase da guerra, que seria a ocupação terrestre de Gaza. Representantes do presidente americano, Joe Biden, teriam demonstrado preocupação com o fato dos de Israel não ter objetivos militares alcançáveis em Gaza e com as Forças de Defesa de Israel ainda não estarem preparadas para lançar uma invasão terrestre com um plano que possa funcionar.
O jornal americano The New York Times mencionou conversas telefônicas entre o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd J. Austin III, e o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, no qual o americano teria alertado sobre a necessidade de uma análise cuidadosa de como os militares poderiam conduzir uma invasão terrestre de Gaza, onde o Hamas mantém intrincadas redes de túneis sob áreas densamente povoadas.
Internamente, o mal-estar entre governo e Forças Armadas em torno da invasão ficou ainda mais evidente quando Netanyahu, Gallant, e o chefe do Estado-maior, o tenente-general Herzi Halevi, emitiram um comunicado conjunto incomum, para afirmar a harmonia entre os setores político e militar. No texto, os três disseram estar “trabalhando em estreita e plena cooperação, 24 horas por dia, para levar o Estado de Israel a uma vitória decisiva” e professando “confiança total e mútua” entre eles. Depois, apareceram juntos antes de uma reunião de segurança e fizeram mais declarações – sem dar qualquer indício do momento da invasão terrestre.
Cautela e pressão interna
Apesar do aceno de união, apoiadores de Netanyahu iniciaram uma campanha por cautela. Um vídeo publicado anonimamente nas redes sociais, atribuído aos partidários do premier, pede que a vida dos soldados esteja em primeiro lugar, pedindo mais tempo de preparação e que a Força Aérea destrua o traiçoeiro sistema de túneis do Hamas antes que as tropas entrem em Gaza — embora os bombardeios frequentes venham sendo amplamente criticados por autoridades internacionais pelo "dano colateral" a civis.
Para analistas, se o pedido atribuído aos apoiadores do premier fosse atendido, poderia significar que a invasão por terra jamais aconteceria, já que seria quase impossível destruir todos os túneis com bombardeios.
— É um equilíbrio delicado entre a vantagem de deixar a Força Aérea fazer o que faz melhor e quanto tempo se pode atrasar a ofensiva terrestre — disse Ehud Yaari, do Instituto de Política para o Oriente Próximo, baseado em Israel. — Quanto mais túneis a Força Aérea destruir, mais fácil será para as forças no terreno.
O especialista acrescentou ainda que Israel tem aproveitado o tempo para expandir a sua lista de alvos em Gaza, reunindo mais informações e interrogando dezenas de agentes do Hamas que foram capturados em território israelense.
A espera, contudo, tem um impacto negativo. A medida que os dias passam e as cenas do atentato terrorista do Hamas esmaecem na memória, enquanto os bombardeios de Israel continuam a matar civis em Gaza e agravar a situação humanitária no enclave palestino, o risco de uma erosão do apoio internacional aumenta. Apenas entre segunda e terça-feira, Israel disse ter bombardeado mais de 400 alvos em Gaza, ao passo que o Ministério da Saúde palestino, administrado pelo Hamas, aponta que o número de mortos na região passou a casa dos 5 mil.
Em paralelo, surgem questões sobre a moral dos soldados e reservistas enviados para posições na fronteira com Gaza e com o Líbano, mantidos quase em um limbo, bem como o impacto na economia israelense da mobilização e da evacuação de cidades perto das fronteiras, custeada pelo Estado — até o momento, cerca de 200 mil pessoas saíram de suas casas, e ao menos metade delas estão em instalações pagas pelo governo.
Liberação de reféns e pressão externa
Se na disputa interna, a mobilização e preparação dos soldados, bem como os impactos econômicos de uma guerra prolongada são motivos de preocupação, o governo israelense é pressionado também na esfera externa. Líderes do Ocidente tem abordado as autoridades políticas do país sobre a resposta ao Hamas em Gaza, sobretudo para evitar que a represália de Israel resulte em uma violação aberta ao direito internacional — barreira que muitos países, principalmente do Sul Global, apontam que já foi rompida — e que as ações ofensivas não dificultem ainda mais o resgate dos cerca de 200 reféns sequestrados pelo grupo terrorista.
Em entrevista a TV americana, Lloyd Austin disse que recomendou a Gallant “conduzir suas operações de acordo com a lei da guerra”, em uma das conversas por telefone. Eles teriam voltado a se falar na segunda-feira, segundo autoridades do Pentágono, na qual o americano teria enfatizado a importância da proteção dos civis. O ponto já havia sido discutido por Biden em um discurso em Tel Aviv, na semana passada, quando advertiu que Israel precisaria de “claridade sobre os objetivos e uma avaliação honesta sobre se o caminho que está seguindo alcançará esses objetivos”.
O governo americano também manteve conversas nos bastidores com as autoridades israelenses para que o ataque em larga escala não ocorresse antes da liberação dos reféns nas mãos do Hamas. O Times citou que o plano de Washington seria retardar esses ataques e tentar uma troca dos sequestrados pelo envio de ajuda humanitária para Gaza, algo que Israel tem impedido que ocorra de forma massiva, avaliando caso a caso.
Nesta terça-feira, quando se reuniu com Netanyahu em Tel Aviv, o presidente francês, Emmanuel Macron, mostrou afinação com Washington ao afirmar que a principal preocupação deveria ser com os reféns, mas disse que a coalizão internacional que combateu o Estado Islâmico na Síria e no Iraque deveria atuar também no combate ao Hamas — demonstrando que o apoio ocidental, apesar das cobranças, ainda permanece com Israel.