Guerra

Desastre na barragem de Nova Kakhovka pode pôr contraofensiva ucraniana em apuros

A inundação das planícies ao redor do Rio Dniéper dificulta as operações de ataque e beneficia as defesas russas

Soldados ucranianos transportam moradores de Kherson em um bote inflável, após destruição de barragem deixar a cidade alagada Soldados ucranianos transportam moradores de Kherson em um bote inflável, após destruição de barragem deixar a cidade alagada  - Foto: Alekse FilippovILIPPOV/AFP

A guerra total é aquela em que "tudo é um alvo e tudo pode ser usado como arma, tanto o humano quanto o não humano". Essa descrição, escrita por Emmanuel Kreike, professor de História da Universidade de Princeton, encaixa-se perfeitamente com o que aconteceu na Ucrânia na terça-feira, com a destruição da represa de Nova Kakhovka.

Uma infraestrutura civil nas mãos de um exército, o russo, acaba causando uma catástrofe que terá graves consequências não apenas humanitárias e ambientais, mas também militares. E, com o aumento triplicado do fluxo do Rio Dniéper em seus últimos 60 quilômetros, uma delas é a obstrução da contraofensiva ucraniana.

As responsabilidades diretas pelo rompimento da barragem ainda não foram esclarecidas, mas a Rússia é a mais beneficiada militarmente. Serhiy Nayev, tenente-general das Forças Armadas ucranianas, afirmou na terça-feira, num encontro com a imprensa, que o Estado-Maior antecipou a possibilidade de as forças russas dinamitarem a barragem, pois os planos da contraofensiva continuavam em curso. Mas Nayev também admitiu que a prioridade é a assistência civil na área, dizendo que "a ordem agora é tomar medidas para proteger a população".

A previsão é que o nível da água suba até cinco metros nesta quarta-feira e que a partir de quinta-feira comece a baixar, segundo a Ukrinform, agência de notícias estatal.

— Na atual situação de ajuda civil, talvez não seja possível realizar operações militares na área por semanas — explica Jérôme Pellistrandi, general reformado do Exército francês, ao El País.

Pellistrandi é menos otimista do que Nayev, chamando a destruição da barragem de "revés brutal para os interesses militares ucranianos".

O Rio Dniéper é, ao passar pelas províncias de Dnipropetrovsk e Kherson, a linha que separa os dois exércitos. Desde o início da primavera (Hemisfério Norte), as forças navais e especiais ucranianas realizam ataques constantes na margem oriental, no território da província de Kherson, ocupada pelos russos. As posições ucranianas foram estabelecidas em alguns assentamentos perto do delta e nas ilhas do rio. Todos esses postos avançados tiveram que sair às pressas na terça-feira do território que havia sido inundado.

Três unidades de forças especiais diferentes explicaram ao El País, em maio, que estavam há meses em uma área ocupada pela Rússia, com o objetivo de forçar o inimigo a manter tropas na região e identificar posições defensivas para serem destruídas quando o ataque ao rio começasse na contraofensiva.

— Pelo menos poderiam tentar um ataque de distração em direção à Crimeia, mas isso agora será muito difícil, exigirá semanas para reconsiderar essa mesma opção — afirma Pellistrandi.

O general francês ressalta que, antes, era necessário planejar um ataque em pontos do rio com uma largura entre 500 metros e um quilômetro, mas agora terá que abranger de dois a três quilômetros.

— Para os russos, é uma enorme vantagem tática, pois sua artilharia poderá facilmente atingir o transporte de veículos blindados em pontões — diz Pellistrandi.

Ele acrescenta outra vantagem para o lado russo, que é a capacidade de deslocar tropas atualmente estacionadas no sul para a frente leste, onde o Exército ucraniano está atacando com intensidade.

As tropas ucranianas estão avançando em Bakhmut e Zaporíjia nos primeiros estágios da contraofensiva. Em Bakhmut, cidade de Donetsk arrasada e conquistada pela Rússia em maio passado, um oficial ucraniano de infantaria entrevistado pelo jornal, juntamente com outros militares entrevistados por meios de comunicação ucranianos, afirmaram que em três dias eles recuperaram o que haviam perdido durante toda a primavera.

— Há um mês, eu disse à minha família que estávamos perdidos, que seríamos esmagados. Agora somos nós que vamos esmagá-los — diz um comandante de batalhão de infantaria em uma conversa telefônica com o El País.

No front em Zaporíjia, os avanços também foram confirmados pelo inimigo. Esse eixo é o mais estratégico da guerra, pois permitiria que as Forças Armadas da Ucrânia avançassem em direção aos territórios ocupados a leste do Dniéper sem ter que realizar um ataque fluvial.

A destruição da barragem de Nova Kakhovka tornará o desembarque no Dniéper ainda mais titânico. Charles Rei, oficial militar aposentado dos EUA e proeminente comentarista da invasão russa nas redes sociais, agora considera impossível uma tentativa de ataque anfíbio ucraniano:

— Atravessar o rio pelo reservatório e rio abaixo já era extremamente difícil. Agora é tecnicamente impossível — disse.

A estrada para a represa, aliás, não existe mais.

Mark Hertling, tenente-general aposentado dos EUA, concordou com Rei que a situação é prejudicial para ambos os lados, embora mais para o ucraniano porque, embora as linhas defensivas russas ao pé do rio tenham sido inundadas, as opções de estabelecer uma cadeia de suprimentos em uma tentativa de ataque pelo rio são seriamente afetadas.

'Primeiro ecocídio na guerra moderna'
Pellistrandi enfatizou que o mais dramático é a catástrofe ecológica. Toneladas de materiais poluentes no reservatório da barragem chegarão às planícies do Dniéper, além da mudança no ecossistema. Os efeitos para o setor agrícola também serão dramáticos, segundo o governo ucraniano. Outro francês, François Heisbourg, analista de referência do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, afirmou à rede LCI que o mundo enfrenta "um ato que pode ser considerado o primeiro ecocídio na guerra moderna".

Kreike, uma das referências acadêmicas no estudo do uso da natureza como arma de guerra, lembra em seu livro "Terra Arrasada" que o ecocídio não é reconhecido como um crime internacional. Ecocídio refere-se à destruição de um ecossistema em detrimento da vida. Em sua obra, Kreike analisa casos de destruição deliberada de ecossistemas com fins militares e para a destruição de comunidades sociais e seus territórios.

Ele define isso como "genocídio ambiental". Os exemplos históricos que ele apresenta em "Terra Arrasada" coincidem com o que a Rússia teria feito se fosse confirmado que eles detonaram a represa. O primeiro exemplo que Kreike usa no livro remonta ao século XVI, durante as revoltas nos Países Baixos contra Filipe II da Espanha. A nobreza local, que se rebelou contra o imperador, destruiu diques que inundaram extensos territórios e cidades, levando a migrações em massa, mas também permitindo ataques de seus navios de guerra.

Existem três teses sobre o que pode ter acontecido em Nova Kakhovka. Kiev defende com unhas e dentes que foi a Rússia que destruiu a barragem com detonações. Embora a Casa Branca tenha dito que ainda não pode tirar conclusões a esse respeito, fontes do governo dos EUA disseram à NBC que tinham informações de que a Rússia era responsável pela catástrofe. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, e altos representantes da União Europeia (UE) demonstraram publicamente sua convicção de que as tropas russas são as responsáveis.

A versão do Kremlin, por outro lado, é que sabotadores ucranianos explodiram a represa. Uma consequência disso é que a Península da Crimeia, anexada unilateralmente pela Rússia em 2014, não receberá mais água pelo canal do Rio Dniéper.

A terceira versão, que de alguma forma foi apoiada pelas autoridades russas na ocupada Nova Kakhovka, é que a barragem desabou porque estava em más condições. A infraestrutura sofreu várias explosões no ano passado, tanto da artilharia ucraniana quanto das tropas russas quando se retiraram da margem ocidental em novembro passado. Múltiplos depoimentos de ambos os lados colhidos na mídia e nos canais do Telegram mostraram unidades dos dois Exércitos estacionadas no rio que foram surpreendidas pela subida das águas e fugiram no último minuto.

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