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Descriminalização da maconha: Brasil retomará debate e pode seguir onda favorável nas Américas

Levantamento mostra que 7,7% dos brasileiros já usaram a erva ao menos uma vez na vida, mas lei não estabelece critérios objetivos para diferenciar uso pessoal de tráfico

População se manifesta a favor da legalização da cannabis na Marcha da Maconha de São Paulo em junho População se manifesta a favor da legalização da cannabis na Marcha da Maconha de São Paulo em junho  - Foto: Nelson Almeida/AFP

Pioneiro na proibição da maconha no mundo, o Brasil pode ter um novo horizonte à frente com a retomada do julgamento no Superior Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, paralisado desde 2015, na quarta-feira.

Hoje, embora usuários teoricamente não possam ser presos pela posse de narcóticos, a legislação não estabelece critérios objetivos para diferenciar o uso pessoal do tráfico. Segundo um levantamento da Fiocruz de 2015, a maconha é a droga mais consumida no país, e 7,7% dos brasileiros já fumaram a erva ao menos uma vez na vida — um contingente de mais de 15,6 milhões de pessoas.

Para especialistas ouvidos pelo Globo, o avanço — mesmo que discreto — nas discussões sobre o porte de drogas no país é resultado de um movimento global que ganha cada vez mais espaço nas Américas, cujo registro do consumo recreativo da maconha remonta ao período colonial.

— A América é o continente que mais sofreu com as consequências da guerra às drogas — afirma a cientista social uruguaia Mercedes Ponce. — Há países em que o consumo recreativo da cannabis ganhou terreno, como a Argentina, mas as políticas públicas não são perfeitas e a luta contra o estigma moral e étnico é grande, mesmo nas questões judiciais.

Segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), a maconha é a droga mais apreendida no continente. Entre 2016 e 2020, o volume de cannabis confiscado pelas autoridades "aumentou substancialmente" na América do Sul, manteve-se estável no Caribe e na América Central, e "caiu acentuadamente" na América do Norte — um possível efeito das políticas liberais adotadas nos últimos anos no Canadá e em diversos estados americanos. No México, a descriminalização do uso recreativo foi sancionada pela Suprema Corte em 2021.
 

Atualmente existem quatro países no continente que regulam a cannabis para fins recreativos: Uruguai, Republica Dominicana, Canadá e Estados Unidos, de acordo com o Monitor de Políticas de Drogas nas Américas do Instituto Igarapé. Alguns estados americanos que regularam o mercado de maconha, inclusive, buscam reparar os prejuízos causados pela guerra às drogas, destaca Marina Alkmin, pesquisadora do Igarapé, citando o perdão das condenações e o reinvestimento de impostos da indústria da cannabis para as comunidades mais afetadas.

— Nos EUA, diversos estados que regulam a cannabis para fins recreativos possuem programas de equidade e reparação social. São avanços importantes ao compreender que a “guerra às drogas” teve efeitos desproporcionais na sociedade, marcados por gênero, raça e classe — explica.

Por outro lado, o Relatório Mundial sobre Drogas das Nações Unidas publicado no ano passado aponta que a legalização da cannabis em algumas partes do mundo promoveu o aumento do uso e seus impactos à saúde. Na América do Norte, a regulação do uso recreativo elevou o consumo diário da substância e de versões mais potentes, embora também tenha feito a receita tributária crescer e reduzido as taxas de prisão pelo porte.

Para Allana Facchini, pesquisadora em políticas de drogas na Universidade Federal Fluminense (UFF), a criminalização causa ainda mais danos à saúde dos usuários.

— As pessoas têm o acesso dificultado sobre o que as substâncias podem causar no nosso corpo, os impactos da superdose, os grupos de risco, e fazem um uso desinformado — analisa Facchini. — Quando a gente consome um produto legalizado, ele passa por uma avaliação de órgãos reguladores como a Anvisa, que garantem um controle de qualidade que não existe no mercado ilegal. Hoje, os usuários não sabem o que estão consumindo.

Origem do consumo e proibição nas Américas
O Brasil foi um dos primeiros países do continente a ter registros do consumo de cannabis para fins recreativos. A erva foi trazida escondida pela população negra escravizada em 1549, segundo o Ministério das Relações Exteriores, e era amplamente usada em práticas religiosas e terapêuticas. Mas o pioneirismo também se deu na proibição: a nação foi a primeira a criminalizar o uso da maconha com a chamada Lei de Posturas, instituída pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, que penalizava "escravizados e outras pessoas" que fumassem o "pito do pango" com três dias de cadeia e chicotadas.

— Enquanto o mundo falava do ópio, o Brasil foi o primeiro a tratar da maconha, pois o consumo era associado à população negra recém-liberta — explica Facchini. — Como não podiam criminalizar mais a pessoa negra, eles criminalizaram as práticas dessa população, na esteira de proibições como a capoeira e o samba.

Segundo a pesquisadora, o Brasil também foi pioneiro ao manifestar suas preocupações sobre o uso da erva à comunidade internacional, em 1915, enquanto seu consumo se tornou uma preocupação global apenas a partir da década de 1960, impulsionado pelos Estados Unidos.

— A primeira lei de drogas em muitos países da América Latina surgiu durante a ditadura, patrocinada pelos EUA para prevenir o avanço do comunismo — afirma Ponce. — Era uma questão de controlar a comunidade hippie que estava representando um problema com as substâncias psicodélicas, que colocavam as pessoas em estados de consciência diferentes do que os governos queriam para a produtividade capitalista. Nos EUA, a erva também era muito consumida pela população de origem mexicana e pessoas negras e foi usada como desculpa pra controlar racialmente grupos mais vulneráveis.

A estratégia de controle social do governo americano foi revelada pelo próprio assessor para Assuntos Internos do ex-presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974), o primeiro a declarar uma guerra à drogas. Em entrevista à revista Harper's em 1994, John Ehrlichman confessou que a Casa Branca tinha dois inimigos: a esquerda contrária à Guerra no Vietnã, encampada pelos hippies, e a população negra.

— Sabíamos que não poderíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou contra os negros, mas fazendo com que o público associasse os hippies à maconha e os negros à heroína, e depois criminalizando ambos fortemente, poderíamos desorganizar essas comunidades — disse Ehrlichman. — Se sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim!

Ponce sublinha ainda que uma disputa econômica também impulsionou a proibição da cannabis. Segundo a cientista social, a fibra do cânhamo extraído da maconha — uma matéria-prima muito resistente e sem psicoativos — foi usada durante séculos na produção de papel, roupas para guerras e cordas para navios. No entanto, também era uma concorrente direta das poderosas indústrias do algodão e do petróleo, que investiram em publicidades difamatórias na época.

Racismo e os desafios na regulação
A herança racista da proibição da erva produz efeitos até hoje. Segundo um estudo realizado pela Agência Pública, que analisou 4 mil sentenças por tráfico no estado de São Paulo em 2017, pessoas negras foram proporcionalmente mais condenadas, ainda que estivessem em posse de quantidades inferiores de entorpecentes. Enquanto réus brancos foram condenados portando, em média, 1 kg de maconha, a quantidade cai para 145 gramas para suspeitos negros.

— Historicamente, você vê no Brasil muitos processos de pessoas flagradas com 1 ou 2 gramas de drogas, o que equivale a processar alguém por roubar R$ 5. Será que vale a pena? É uma questão que também tem a ver com a inteligência do sistema. A gente gasta nosso Judiciário e a polícia com coisas muito pequenas — reflete o advogado Murilo Nicolau, especializado no assunto. — O grande problema hoje é que o usuário, em tese, não poderia ir para a cadeia, mas acaba sendo preso por tráfico.

Um estudo do Instituto Igarapé de 2015 sugere que a quantidade estabelecida pela lei para diferenciar usuário de traficante deveria considerar o limite de 100 gramas de cannabis — o suficiente para fazer entre 100 e 200 cigarros. Critérios objetivos muito baixos podem ter o efeito reverso e agravar a crise do sistema penitenciário, defende a organização.

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