meio ambiente

Dia da Água: "De cada dez desastres, oito são relacionados à água", diz ambientalista que vai à ONU

Especialista brasileiro que participa de encontro global nesta semana defende maior articulação para preservar recursos hídricos no Brasil e diz que desafio climático é o maior do século XXI

Chuvas em PernambucoChuvas em Pernambuco - Foto: Melissa Fernandes / Folha de Pernambuco

Verões cada vez mais quentes, chuvas fortes em estações não usuais, períodos de seca que comprometem o abastecimento de água em grandes centros urbanos, enchentes que arrastam casas e tiram vidas. Desastres ambientais têm sido cada vez mais frequentes, e os pesquisadores mostram que não é por acaso.

Não mudar a gestão de recursos naturais pode custar caro às sociedades em todo o planeta, alerta o gerente da área de água do The Nature Conservancy (TNC) Brasil, maior organização de conservação ambiental do mundo, Samuel Barreto.

Em entrevista ao GLOBO, ele diz que, no Brasil, a segurança hídrica depende de soluções rápidas de adaptação à mudança climática. Nessa missão, a responsabilidade é de todos, afirma o ambientalista, que defende a união de forças dos setores público, privado e da sociedade civil para construir um futuro sem escassez do recurso.

Barreto participa nesta semana, em Nova York, da Conferência da Água, da ONU. Em sua palestra, pretende estimular líderes empresariais a investirem em ações para mitigar as mudanças climáticas.

Além disso, no evento, a TNC apresenta o estudo “Reservatório Invisível”, feito com base no histórico do Sistema Cantareira, em São Paulo, que busca demonstrar como a disponibilidade de córregos, rios e represas não depende apenas das chuvas, mas também da água que não se vê, aquela armazenada no subsolo.

A restauração florestal de 14% da área total da bacia estudada, com intervenções em pontos de maior impacto, teriam potencial de resultar em 33% mais água disponível nos mananciais em períodos de seca. Se essa fosse uma preocupação 30 anos antes da crise hídrica no Cantareira, entre 2014 e 2015, estima-se que uma perda econômica de R$ 443,9 milhões na indústria e no setor de saneamento poderia ter sido evitada. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

A Lei das Águas, que tem o intuito de proteger os recursos hídricos do Brasil, completou 26 anos. Como avalia a sua eficácia?
Tivemos vários avanços importantes, mas é preciso dar celeridade. O principal é a permissão para a participação da sociedade civil, com a descentralização da gestão dos recursos hídricos. Essa participação efetiva entre diferentes atores é extremamente importante. Um exemplo é o upgrade no Rio Jundiaí, da bacia que fica entre Minas Gerais e São Paulo.

Foi resultado de um grande esforço e mobilização que começou pela sociedade e que mudou a classe de água de 4, que significa rio morto, para 3, permitindo que milhares de pessoas tivessem acesso à água na pior seca que o estado (SP) passou, entre 2014 e 2015. Isso é uma conquista desse arcabouço legal.

No Rio de Janeiro, um exemplo é a recuperação da Lagoa de Araruama. O comitê de bacia fez todo um trabalho para além das suas competências, estabelecendo diálogos. Até mudou o contrato da concessão de água do governo com as companhias.

Alguns estados já têm na conta de água uma cobrança pelo uso, aplicada de acordo com as prioridades do plano de bacias. Isso é suficiente?
Quando a gente fala cobrança, isso já afasta as pessoas. Mas essa cobrança é um instrumento de gestão, um recurso que vai ser reinvestido na bacia. Também funciona como alavancador de outros fundos, ou seja, pode resultar em mais investimentos para a recuperação da bacia hidrográfica.

Não é mais suficiente captar, tratar, distribuir e vender água. Se a gente não cuidar da fonte, estaremos perdendo a galinha dos ovos de ouro, a capacidade dos nossos mananciais de abastecer a população.

Ainda existe a falsa impressão no Brasil que a quantidade de água potável é infinita, ainda que não seja verdade...

Um exemplo é a represa Billings (outro reservatório em SP), que é um ativo encalhado. No período da seca, ela estava completamente cheia, mas sem condição nenhuma de uso porque estava completamente poluída. Até tinha tecnologia para isso, mas o custo é tão alto que fica inviável para os usuários pagarem pela limpeza.

Como estimular a preservação das bacias, então?
Hoje, o modelo tem sido buscar água cada vez mais longe e a um custo maior, gerando conflitos. À medida que o recurso está mais longe de você, está mais perto de alguém, o que gera disputa e um custo altíssimo.

As grandes cidades não têm solução mais barata. Nesse caso, a gente vai ter que pensar, de fato, na conservação e na recuperação dos nossos mananciais. Aí vem a importância da ação do setor de saneamento. Eles precisam ter protagonismo nessa agenda e entender que a proteção de águas é importante para a manutenção do negócio.

O segundo ponto é o pagamento por serviços ambientais junto a proprietários rurais. Esse modelo permite melhorar práticas agrícolas, manejar o solo de maneira adequada, evitar erosão e recuperar nascentes. O produtor rural é fundamental no processo.

Acredita que apenas essas medidas de incentivo bastam?
Não dá para ser só por incentivo. Tem que ter mecanismos de comando e controle. Vemos o que está acontecendo com o garimpo ilegal (na Amazônia). Tem que ter as duas coisas: a estratégia e a tática.

De todos esses recentes desastres ambientais, quantos poderiam ter sido evitados se tivéssemos melhores práticas?
Muitas crises acontecem por falta de gestão e governança. Quando há regras estabelecidas e implementadas, o risco se reduz. Não é aquilo que vai acontecer, é o que já está acontecendo. De cada dez desastres, oito são relacionados à água. Uma das consequências associadas é a menor capacidade de recarga do lençol freático. A água escorre superficialmente, provoca erosão, desmatamento e perda da biodiversidade.

Na Amazônia, com desmatamento acelerado, há indicadores de estarmos próximos a um ponto de não retorno. Ainda dá tempo de fazer alguma coisa?
Temos que construir um plano de transição para a economia de baixo carbono. Aí acho que o Brasil tem um diferencial interessante, porque temos ainda terras e capacidade de biodiversidade, em risco, porém importante. Eu acho que com isso poderemos lidar melhor com os desafios que vêm pela frente.

Sem dúvida, o desafio climático vai ser o maior deles durante todo o século XXI, afetando a todos nós, mas principalmente os mais vulneráveis. Na Bacia do Tapajós, por exemplo, há uma área muito afetada pelo garimpo, onde povos tradicionais estão sofrendo com a contaminação da água, do peixe e tendo impactos na saúde. É importante trazer essas diversas vozes.

Para além desse valor econômico, a água é um bem imaterial. Para os povos indígenas, existem rios que são sagrados. A gente desconsidera esses atributos... É preciso olhar para esse processo de participação social, com inclusão, justiça climática e equidade.

E individualmente? Pequenos atos podem contribuir?
A gente sabe que tem muito desperdício. Muita gordura no sistema, temos modelo de consumo muito pernicioso. A nossa casa poderia ser muito mais inteligente. Não faz sentido pegar água limpa e tratada para dar descarga.

Na Austrália, depois de uma crise que eles tiveram, cada casa passou a ser quase uma unidade autossuficiente. O grau de sofisticação chegou a tanto que até o tipo de paisagismo foi mudado, de plantas que consomem mais água para outras que consomem menos. Mas isso só foi possível porque foram criados incentivos pelo governo para essa transformação, semelhantes àqueles que tivemos aqui no Brasil para as placas solares.

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