Dias com "calor letal" ocorrerão em todos os continentes habitados, diz estudo
À exceção da Antártida, todas as grandes massas terrestres terão locais em que o clima é inadequado à sobrevida humana ao menos um dia por ano, indica simulação
Com o avanço da crise do clima, todos os continentes terão áreas sujeitas à ocorrência de 'calor letal' pelo menos um dia por ano, à exceção da Antártida, afirma um novo estudo liderado pela Universidade de Oxford.
O trabalho, publicado nesta sexta-feira pela revista Science Advances, usou dados novos para simular quais regiões do planeta terão maior susceptibilidade a apresentar condições meteorológicas incompatíveis com a sobrevivência humana ao ar livre.
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Para definir o quão quente é o ambiente que humanos conseguem suportar, os cientistas liderados pelo climatólogo Carter Powis usaram um modelo de simulação futura que leva em conta não apenas os termômetros, mas também umidade e outros fatores.
Expandindo trabalho do cientista Daniel Vecellio, da Universidade da Pensilvânia, o grupo de Oxford empregou um índice batizado de "calor incompensável", que considera a medida de termômetros de "bulbo úmido", uma medida clássica que coloca o instrumento num tecido embebido em água para simular o efeito resfriador do suor humano.
Tipicamente, um local que apresente temperatura de bulbo úmido acima de 35°C por mais de seis horas é considerado como inadequado para sobrevida, mas ventos e outros fatores também influenciam a medida. Essa é uma condição que poucas pessoas no planeta já enfrentaram.
Em lugares de umidade moderada (55%), a temperatura de bulbo úmido chega a 35°C quando a temperatura real está em 43°C, por exemplo, porque sem o ar saturado de água a evaporação do suor é mais eficaz em resfriar a pele. Vecellio mostrou, porém, que o calor já começa a ser letal em temperaturas bem abaixo dessas, dependendo da pressão do vapor d'água no ambiente.
Já existem áreas habitadas no planeta que apresentam mais de um dia por ano com calor incompensável. De 1970 a 2022, cientistas observaram esse período de ocorrência em estações meteorológicas no Golfo Pérsico, no Mar Vermelho, no deserto da fronteira EUA/México e na planície dos rios Indo e Ganges, na Índia.
Powis nota, porém, que nesses lugares a população já possui cultura e infraestrutura relativamente preparada para ocorrência de extremos. O mesmo não se pode dizer de grandes cidades dos EUA e na Europa.
"Por enquanto, apenas populações já adaptadas a climas mais quentes foram expostas a extremos de calor incompensável", escreve o cientista. "Mas acreditamos que tanto a amplitude geográfica quanto a frequência do calor incompensável aumentem no futuro, expondo mais populações a um nível maior de risco térmico, necessitando de ainda mais estratégias robustas de adaptação."
No estudo, os cientistas calcularam diversos cenários de aquecimento futuro, desde um que considera a situação atual (1°C mais quente que o período pré-industrial) até um aquecimento extremo de 3,5°C no período até 2100.
Mesmo abaixo do nível de 2°C, o limite máximo indicado como meta do Acordo de Paris para o clima, diversas outras áreas do planeta começam a registrar calor incompensável. Na América do Sul, boa parte da região da Amazônia e do Pantanal/Chaco consideradas na análise entram nessa zona de risco.
Áreas secas em outros continentes, porém, podem impactar humanos pelo extremo oposto, obrigando populações a enfrentar calor sem acesso adequado a água, e com todos os problemas respiratórios conhecidos relacionados a estiagens.
— Existe um risco real de centenas de milhões de pessoas serem expostas a calor incompensável como parte de um evento extremo antes de estarem fisiologicamente e comportamentalmente adaptadas ao calor para evitar prováveis aumentos de mortalidade — diz Powis.
Algumas zonas habitadas do Brasil não foram consideradas no estudo, que enfocou áreas sob maior risco. Uma faixa pequena envolvendo Rio e São Paulo foi incluída, porém, e é preocupante, sobretudo no cenário com um aumento acima de 2°C global em 2100. Se o limite de 2°C for ultrapassado na média do planeta, a porcentagem de estações meteorológicas que registram calor incompensável ao menos uma vez por ano vai aumentar de 17% para 36%.
Powis detalha em seu estudo principalmente cenários para EUA e Europa, em parte por essas regiões produzirem um volume maior de dados de temperatura para permitir análises. Hoje, em 97% do território europeu os dias com calor incompensável só ocorrem em menos de um verão a cada século. No cenário de aumento de 3,5°, para metade do continente esses registros ocorrerão uma vez a cada década.
Financiamento para adaptação
O risco se espalha muito, porém, para países em desenvolvimento, e a adaptação ao calor extremo deve ganhar força na discussão sobre financiamento de nações ricas às mais pobres para lidar com a situação. Os pesquisadores notam que não necessariamente a solução será o emprego irrestrito de aparelhos de ar-condicionado.
"Há muitas formas disponíveis de adaptação além do ar condicionado, incluindo ajustes comportamentais (como desacelerar, parar e buscar refúgio na sombra, água, ou outros ambientes naturalmente frescos). E há o uso de ventiladores elétricos, condicionamento aeróbico e aclimatação", escrevem os cientistas.
Isso não significa, porém, que em locais onde as pessoas estão hoje lidando com o calor dessas maneiras a solução vai continuar funcionando.
"A mudança climática traz a emergência de eventos extremos que devem ir muito além da gama de experiências das pessoas no mundo historicamente", afirma Powis.