Dinheiro no bolso, terror sobre direitos: como Massa venceu o 1º turno com inflação de 140%
Advogado de carreira, Massa tornou-se ministro da Economia de Alberto Fernández em agosto do ano passado
A estratégia funcionou. No primeiro dia em que Sergio Massa tomou posse no quinto andar do Ministério da Economia da Argentina, há pouco mais de um ano, disse aos seus colaboradores qual era o seu plano. Tinha um objetivo claro: ser o candidato peronista à presidência. Naquele momento, parecia uma utopia. A presidência de Alberto Fernández já não estava no bom caminho. Cristina Kirchner estava sob escrutínio judicial. E então um advogado de profissão assumia a caneta mais poderosa do país para aplicar seu plano.
Desde o primeiro dia, o Ministério da Economia tornou-se um território político. A tal ponto que rompeu com a máxima de todos os seus antecessores: foram desligados os seis monitores do gabinete e deixado de lado o acompanhamento minuto a minuto das reservas, da cotação do dólar, dos valores das commodities e até das obrigações que sempre marcaram a agenda dos inquilinos do Tesouro.
"O telefone é suficiente para mim. Se tenho dúvidas, ligo para um especialista. O que eu tenho que ter é a temperatura da rua" gabou-se Massa com tranquilidade.
O ministro anotou as prioridades no seu caderno e as assinalou como um roteiro. O curto prazo, claro, foi o guia desde o início, com três marcos principais: as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), a eleição de 22 de outubro e a eleição definitiva, para a qual começou a trabalhar muito antes da noite deste domingo. Mas, como é que um ministro da Economia com um dólar blue (paralelo) a US$ 1.100 e uma inflação de 148% ao ano consegue sair na frente nas eleições? O que mudou para que o país, que ficou furioso e o deixou em terceiro lugar na Paso, voltasse a olhar com bons olhos para um governo que tem 40% da população abaixo do limiar da pobreza?
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Paradoxalmente, as razões econômicas estão na raíz argentina e na sua aliança inquebrável com a ala sindical, que não hesitou em sentar na primeira fileira para sua fotografia de campanha. Na oposição, Patricia Bullrich apelou à ordem e ao bimonetarismo; e Javier Milei, à dolarização e a não tentar uma "mudança com os mesmos de sempre". Em ambos os casos, foram propostos ajustes: no Juntos pela Mudança, do Estado; no Liberdade Avança, da casta. No União pela Pátria, semearam a ideia do "venham buscar tudo, venham buscar os seus direitos", com um limite de tolerância cada vez mais baixo de uma sociedade que há muito tempo passa por dificuldades.
Com estas ferramentas na mão e dados concretos, Massa começou a trabalhar nos medos do seu eleitorado. Há 18,7 milhões de pessoas no país que benefícios do Estado, entre aposentados, pensionistas, beneficiários de planos sociais e pensões ex gratia — dentro desse universo estão cerca de 3,8 milhões de funcionários públicos. O setor privado argentino emprega cerca de 6,2 milhões de pessoas. Na Aerolíneas Argentinas, foi divulgado um vídeo no qual Massa se apresentava como a única opção, uma vez que o resto "queria fechar a transportadora de bandeira"; nos trens, os passageiros foram informados de que as passagens aumentariam de US$56 para US$1100; e assim por diante em todos os cantos do setor público, onde o "aparato" de comunicação funcionou perfeitamente. A macroeconomia e o déficit de US$3,5 milhões dos trens estatais estavam muito longe da população mergulhada na desesperança e no cansaço, como revelavam todas as pesquisas que refletiam o clima da época de 2023
"Plano platita"
"La plata no alcanza" (O dinheiro não chega) foi outra frase recorrente nos grupos de discussão. Por isso, o "plano platita 3″ não poupou os recursos após a derrota na Paso. Os programas tinham que ser levados para "todos e todas". No mínimo, o resultado chegaria em dezembro; no máximo, seria um problema para a presidência, mas com uma margem para ganhar tempo. Foi assim que foram despejados cerca de US$ 3 mil milhões nos setores mais díspares. Em outras palavras, o equivalente a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de um país que precisa arrumar suas contas.
"Pouco importa de onde vêm, se é que vêm. As pessoas estão preocupadas com o fato da roda girar e foi isso que conseguimos" argumenta um exultante membro do pequeno gabinete do Ministério da Economia.
Outro dirigente kirchnerista observa:
"Ao mesmo tempo, ainda era latente a falta de moderação do macrismo, que derreteu todo o comércio varejista, e agora estavam propondo algo semelhante."
Medidas em série
Sem hesitar, após a derrota na Paso, a economia pesou mais do que nunca. Massa decretou o reembolso de 21% das compras nos supermercados, independentemente se era para um alimento da cesta básica, um eletrodoméstico ou um produto de luxo. Adiou o aumento das tarifas da energia e dos transportes; decretou um bônus de 20 mil pesos (cerca de R$ 287,36) para os desempregados e outro de 94 mil pesos (cerca de R$ 1350) para os trabalhadores informais; lançou um alívio fiscal para os trabalhadores independentes; um bônus mensal para os reformados; um valor fixo para os trabalhadores do setor privado; reforços no Cartão Alimentação e no programa “Potenciar Trabajo”, além de um novo programa “PreViaje” (voltado para o setor turístico que retorna 50% do valor da viagem em crédito), que pretende transformar numa política de Estado.
Os beneficiários da “Compra sem Imposto sobre Valor Agregado (IVA)” são cerca de 7 milhões de reformados e pensionistas; 2,5 milhões de beneficiários do Benefício Universal por Filho; 2,7 milhões de contribuintes individuais; trabalhadores em relação de dependência e 440 mil trabalhadores do Regime do Pessoal da Casa Particular. O reembolso é de até 18 mil pesos. No melhor estilo K, há uma história por trás de tudo: "As medidas devem-se ao impacto da desvalorização imposta à Argentina pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Estamos aqui para proteger os salários dos trabalhadores, que nunca mais terão que pagar imposto sobre o rendimento", justificam.
Uma versão 2023 do "vamos cuidar da mesa do povo argentino" como alternativa para o encerramento das exportações. Omitiu-se, é claro, que essa exigência de desvalorização vinha a reboque de um desembolso indispensável para poder chegar à próxima etapa sem acabar derretendo o motor das reservas inexistentes do Banco Central.
Como se isso não bastasse, foram anunciadas diferentes linhas de crédito a taxas bonificadas para reformados, contribuintes individuais e trabalhadores dependentes; um "alívio fiscal" para os contribuintes individuais das categorias A, B, C e D; acordos de preços com empresas de grande consumo, empresas de combustíveis e automóveis; e um congelamento de 90 dias das taxas de pré-pagamento, a partir de outubro. "O dia seguinte será o dia seguinte. Agora, basta que a missão tenha sido mais do que cumprida", festejaram na noite de domingo no bunker da União pela Pátria.
A batalha final
Além disso, Massa já tinha previsto que a batalha final seria em novembro e que seria essencial seduzir parte do eleitorado do Juntos. É então que com o salário desse mês virá o novo piso para o imposto de renda. Assim, com a liquidação de outubro, deixarão de ter desconto aqueles que têm remunerações entre R$ 10 mil (ou um valor superior, dependendo das deduções por filhos ou por despesas que tenham sido declaradas) e um valor de cerca de R$ 28,7 mil. A melhoria das remunerações deste segmento de trabalhadores será imediata.
"Ficarei até 10 de dezembro, nunca solto o leme no meio de uma tempestade", defende Massa, com as pesquisas na mão. Claro que não existe magia na economia e, à medida que o plano de estabilização vai sendo adiado, os alarmes vão soando cada vez mais alto.
"Agora começa uma nova eleição e teremos mais facilidade, porque o Juntos pela Mudança está fora de jogo e o confronto é claramente mais fácil com Milei. Basta ele dizer o que pensa para que a sociedade entenda que é um salto para o vazio" antecipou neste domingo, em modo de campanha, um dos dirigentes de La Cámpora que mais militou pela presidência de Massa.
A questão é que, sem dúvida, cada vez mais problemas continuam se acumulando debaixo do tapete.
"Posso entender o voto de raiva, mas de forma alguma o voto de hiperinflação" disse um ex-ministro da Economia do governo de Mauricio Macri, no domingo.
"A economia não pode continuar [assim]. Várias empresas estão diminuindo sua produção e as dívidas com os fornecedores internacionais atingiram um ponto de não retorno" observou o presidente de uma empresa de peças para automóveis, sob rigorosa condição de anonimato.
Os exemplos são muitos, mas um dos mais paradigmáticos é o da General Motors, que paralisou a sua fábrica em Rosário e caminha para duas semanas completas de inatividade.
A "pequena máquina", uma das causas da inflação, não para. Para Ieral, da Fundação Mediterrânea, a expansão monetária de origem fiscal visa atingir o equivalente a 6% do PIB em 2023, incluindo todas as rúbricas, um número apenas comparável ao da pandemia de 2020 (7,5% do PIB). De janeiro a setembro, o déficit fiscal acumulou US$ 2,6 bilhões. O governo se comprometeu a atingir um déficit de 1,9% do PIB com o FMI, mas isso parece ter sido esquecido.
"Não há dólares. Não há direção. Não há futuro" gritava no domingo (22) outro empresário, ansioso por uma transição agora inacabada, acrescentando: "Já não sei como esticar o pavio. Antes, os investidores internacionais não acreditavam no governo, mas agora não acreditam nem em nós, que temos mais de sessenta anos de história" lamentou o homem do interior.
Na noite deste domingo, o cripto-dólar, que antecipa os preços, estava em baixa, embora seja apenas um retrato de uma ideia de governabilidade que para muitos parecia perdida.
O contraste do "plano platita" ou pragmatismo político também acontece porque o cobertor está ficando mais curto. Enquanto os pesos se reproduzem exponencialmente, o suporte da moeda está diminuindo. Embora os votos tenham dado respaldo concreto à atual administração, cada vez mais empresários relatam uma "sensação de hiperinflação", como descreveu Cristiano Rattazzi, antigo presidente da Fiat Chrysler.
A contenção das importações também teve um impacto concreto na atividade e, quanto mais restrições, menos dólares entram na economia. Em nove meses, a balança comercial é negativa em cerca de US$ 7 mil milhões. Ninguém duvida de que irá aumentar com a dívida comercial que as empresas acumulam com as suas matrizes ou com os seus fornecedores internacionais.
"Agora só nos resta esperar o 'plano platita' para a próxima eleição, mas há cada vez menos dúvidas de que na Argentina algo se rompeu definitivamente: a capacidade de surpreender" disse um dos empresários mais influentes do país, que vive no Uruguai há três anos, acrescentado: "Agora, a batalha será travada entre dois populismos: um de direita e outro de esquerda. Fico muito triste em saber que, diante da possibilidade de ordem, a Argentina optou por atalhos que só levam a um caminho sem volta, e a história prova isso".
Massa confirmou que voltará ao seu gabinete da Economia e os problemas serão os mesmos que deixou na sexta-feira passada, com uma única diferença: ele segue na corrida presidencial.
"O que as pessoas estão esperando é um plano concreto, coisas normais, tipos normais, que digam coisas normais. Na segunda-feira, a vida continua, os bares não fecham, é tudo momentâneo, é tudo qualitativo. Quando vão ao supermercado, as prateleiras não estarão vazias: segunda-feira será um dia normal" concluiu o economista Juan Carlos de Pablo. A Argentina não entenderia.