Discurso do CFM é de quem não usa a ciência como norteador, diz presidente do Einstein
Sidney Klajner, 53, presidente da Sociedade Israelita Albert Einstein, falou sobre os impactos da Covid-19
O cirurgião Sidney Klajner, 53, presidente da Sociedade Israelita Albert Einstein, diz lamentar o fato de colegas médicos insistirem em tratamentos precoce contra a Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina, comprovadamente sem eficácia.
Ao mesmo tempo, ele estranha que o CFM (Conselho Federal de Medicina) não tome providências, alegando que o médico tem autonomia para a prescrição. "É um discurso de quem não usa a ciência como norteador e acaba sendo um argumento que faz com que as pessoas acreditem numa solução que é uma mentira."
Klajner afirma que o cenário de internações e mortes por Covid no país em abril não deve ser muito diferente daquele registrado em março, pior mês da pandemia, o que reforça a necessidade de se manter as medidas restritivas.
Além de suspender cirurgias eletivas, o Einstein passou a usar espaços alternativos, como o da reabilitação, da polissonografia e de um centro cirúrgico, para criar mais leitos para pacientes de Covid.
"A vacinação a ritmo de conta-gotas no Brasil abre espaço para mais mutações acontecerem e, Deus nos livre, para essas mutações passarem a não responder mais às vacinas", diz ele.
PERGUNTA - Março foi o pior mês da pandemia no Brasil, com 66 mil mortos. O que podemos esperar para abril?
SIDNEY KLAJNER - Março foi uma tragédia total. Eu vejo abril com um cenário não muito diferente do de março. Ainda vamos conviver com um número alto de pacientes internados e de mortes, especialmente no setor público, que sente mais a falta de UTIs e de insumos.
E o que é possível fazer para minimizar a tragédia?
SK - Temos que reiterar as medidas de precaução o tempo todo. Tem um manifesto circulando de proposta de lockdown no país todo em abril [#AbrilPelaVida] para controlar a pandemia. Se a gente não tiver as medidas e restrição muito ativas, a gente não controla. O ritmo de vacinação continua muito lento.
O sr. é favorável a um lockdown nacional?
SK - Eu acho que a concepção da palavra lockdown no Brasil é impossível. Até pela educação da população e das condições de moradia e de habitação que a gente tem aqui. Na Europa, lockdown fecha até transporte público. Você tem multas se sair de casa.
Eu sou favorável a continuar apenas com atividades essenciais e que isso seja fiscalizado. A gente vê imagens do Mercadão de São Paulo lotado. Certamente terão contaminados ali. Precisa fazer o que foi feito nos outros países, ter um plano de auxílio para os mais vulneráveis e para os setores da economia mais prejudicados.
Como está a situação de ocupação de leitos no Einstein?
SK - A gente enfrentou dias tensos na semana retrasada, com uma ocupação de 302 leitos [de um total de 700] com pacientes de Covid. Eram mais ou menos 130 no setor de pacientes graves, a UTI e semi-intensiva. Desses, 73 em ventilação mecânica. Todos os dias eram de aumento progressivo no número de casos.
Criamos quase cem leitos. Usamos [o espaço da] reabilitação para gerar leitos, a imunização passou para o teatro, a polissonografia deixou de ser feita, fomos transformando o que dava para fazer leitos, inclusive o centro cirúrgico do 5º andar, de mais alta complexidade, e a sala de recuperação.
Desde sexta [26], passou a haver uma estabilidade, com tendência de queda de internações nos últimos dias. Na última sexta [2], estávamos com 265 [pacientes internados]. Os outros hospitais privados já começam a sentir isso também.
O sr. acredita que essa estabilidade dos casos já pode ser reflexo das medidas mais restritivas de circulação adotada no estado?
SK - Acho que sim. O Einstein atende um tipo de população que pode se isolar, ficar em casa, ir para o interior. A gente percebe isso aqui, mas nos hospitais públicos ainda não.
Cirurgias eletivas estão suspensas?
SK - Sim, desde a semana passada. Estão mantidas as urgências, emergências e as cirurgias oncológicas. Temos tido em torno de 25, 30 cirurgias por dia. Antes eram 110, 120. Em janeiro, chegamos a ter 155 em um só dia.
E isso deve se manter até quando?
SK - À medida que os dias demonstrarem uma certa estabilidade, que permita a gente [retomar]. O problema maior são os leitos. Quando a gente estiver numa situação um pouco mais confortável, a própria Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] colocou a critério do hospital e do médico a decisão sobre os procedimentos cirúrgicos.
Cinco grupos empresariais uniram esforços com o Einstein e a Prefeitura de São Paulo para construir uma nova ala só com leitos de UTI no Hospital Vila Santa Catarina. Como e quando deve começar a funcionar?
SK - É uma estrutura com 40 leitos de UTI que usa uma tecnologia feita com chapas de aço. Deve ficar como legado para o hospital e será entregue até o final de abril. Mas achamos já vai dar para usar uma parte deles em meados deste mês. Nesta semana, tivemos dias com 77 pacientes no pronto-atendimento [que o Einstein gerencia], sem leitos, sendo que 22 estavam em um espaço transformado em UTI.
Como está a situação dos medicamentos que compõem o kit intubação e de outros insumos?
SK - Estamos no limite. Temos estoque para continuar funcionando por alguns dias, mas buscamos diariamente formas de repor. Existe a ameaça de requisição pelo Ministério da Saúde e isso tira a motivação de comprar porque você sabe que vai ser requisitado. O consumo de oxigênio está muito maior. Desde o ano passado, dobramos a capacidade de armazenamento e centralizamos tudo na unidade do Morumbi, direcionando conforme a necessidade.
O ministro Marcelo Queiroga disse que fará uma campanha pelo uso racional de oxigênio nos hospitais. Isso é possível?
SK - Discutimos isso aqui com as principais lideranças do Einstein. Não é racionar, mas, sim, evitar o desperdício. Por exemplo, o paciente recebe alta, você tira o cateter [de oxigênio] e esquece de fechar a válvula. É não usar um conector adequado, que permite vazar menos, é ter indicação de nebulizar com dois litros por minuto e o equipamento estar com três. Na minha casa, meu pai falava que não era sócio da Light, para não deixar a luz acesa sem necessidade. Com o oxigênio é a mesma coisa.
Há poucos dias o sr. gravou um vídeo dizendo que o país cultiva a morte e fez apelo para que a sociedade mantenha as recomendações cientificamente comprovadas contra a Covid. O que o levou a isso?
SK - Eu tenho falado sempre que posso sobre a importância de não baixar a guarda, independentemente da vacina. Quando você vê o seu hospital com 300 leitos ocupados com Covid, pacientes de 40, 45 anos intubados, é algo que não acontecia com as outras cepas do coronavírus.
Quis trazer o papel da ciência à tona, desmistificar as fake news. Mas escutei comentários de que o Einstein não dá tratamento precoce porque senão esvazia a UTI...
Foi um apelo triste. Não é que o sistema vai entrar em colapso. Ele já está em colapso. As pessoas já estão carentes de tratamento daquilo que não é Covid.
Tratamento precoce continua sendo propagado pelo presidente Jair Bolsonaro, e o novo ministro não demonstrou até agora que vai bater de frente em relação a isso, o CFM tampouco. Como médico e gestor, como se sente?
SK - Precisa falar?
Precisa...
SK - A medicina é uma ciência. Quando tem colega meu usando de outros interesses senão a ciência, eu só posso lamentar, porque ele não está fazendo o que jurou durante a formatura dele, de colocar o paciente em primeiro lugar.
Quando vejo um presidente do CFM, cuja responsabilidade é garantir a boa prática médica, e o mesmo CFM que não falou de autonomia quando quis julgar a telemedicina, e não fala até hoje, mas para uso de medicamento sem comprovação nenhuma, fala que o médico tem autonomia... Se eu quero atender o meu paciente pelo Skype eu não tenho essa autonomia?
É um discurso de quem não usa a ciência como norteador. Acaba sendo um argumento que faz com que as pessoas acreditem numa solução que é uma mentira. A gente vê essa situação de os leitos acabando, de demanda reprimida de outras doenças, e precisamos chamar a população para a veracidade desses fatos, senão sempre vão ter pessoas que, diante de uma liderança dúbia, escolhem aquela que contemple os seus objetivos, que diz que tem um remédio que vai salvar. Por que então não usam [tratamento precoce] em outros países? É uma conspiração?
Há alguma razão para as pessoas infectadas pela Covid-19 ou que já foram vacinadas se sentirem seguras?
SK - Não, pelo contrário. Tem uma série de trabalhos demonstrando que, após uma primeira infecção, há uma queda sensível de anticorpos, e o número de reinfecções tem aumentado.
Há também pacientes vacinados que acabaram adquirindo a Covid mesmo com a segunda dose, não as formas graves. A vacina tem uma eficácia maior na prevenção de casos graves do que na possibilidade de adquirir a doença.
Temos tido a capacidade de sequenciar cada vez mais os coronavírus de um grupo amostral de pacientes. Das 78 amostras analisadas até o momento, a prevalência da variante P.1, de Manaus, é de 83%.
E vimos que já existem alterações das mutações em cima da P.1 que tornariam o vírus, além de mais transmissível, mais virulento. Por esse motivo a gente acredita que o número de pacientes jovens tem aumentado.
Isso tornam ainda mais importante o sequenciamento e o não abandono das medidas de precaução. A vacinação a ritmo de conta-gotas no Brasil abre espaço para mais mutações acontecerem e, Deus nos livre, para essas mutações passarem a não responder mais às vacinas.