JULGAMENTO

''Disparo de alerta'', ''golpe diplomático'': como a decisão em Haia foi vista em Israel

Veículos de imprensa e analistas destacaram a exigência feita pela Corte Internacional de Justiça de um relatório sobre ações tomadas pelo governo para evitar um genocídio

Palácio da Paz, sede da Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, na HolandaPalácio da Paz, sede da Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, na Holanda - Foto: CIJ

Pouco depois da Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia emitir uma decisão preliminar no caso em que a África do Sul acusa Israel de cometer atos de genocídio na Faixa de Gaza, ligados à operação militar contra o Hamas, um relativo consenso foi visto em veículos de imprensa e parte dos analistas israelenses: a decisão, apesar de não explicitar uma ordem de cessar-fogo, como originalmente foi pedido pelos sul-africanos, foi considerada péssima para o país.

"A intenção [de cometer genocídio] nunca será provada por uma razão simples e imperiosa: Israel nunca teve a menor intenção de cometer algo remotamente próximo do genocídio. Mas esse não é o ponto. A decisão provisória de sexta-feira foi o tribunal internacional emitindo uma advertência a Israel", disse o colunista Alon Pinkas no Haaretz, um jornal crítico ao governo de Benjamin Netanyahu.

No Jerusalem Post, uma publicação ligada a grupos nacionalistas e que não raramente publica textos considerados racistas e que desumanizam os palestinos, Yonah Jeremy Bob, correspondente militar, chegou a insinuar que a decisão, por não ordenar uma suspensão imediata dos combates, foi "uma vitória" para Israel.

"Por 35 minutos, a Corte Internacional de Justiça falou mal de Israel, mas depois surpreendeu o Estado judeu ao não emitir nenhuma ordem prática contra o Exército", disse o colunista, que ao mesmo tempo em que apresentava argumentos para sustentar sua tese, reconhecia, no final do texto, que há elementos práticos na decisão. "O item prático mais preocupante para Israel é a necessidade de reportar à CIJ em um mês, algo que deixa a porta aberta para uma ordem mais séria."

Segundo a Corte, Israel deverá apresentar, em 30 dias, um relatório detalhando todas as ações realizadas para cumprir as demais ordens da decisão, relacionadas a medidas para evitar atos que possam violar as leis sobre genocídio, incluindo a punição a pessoas que adotem publicamente esse tipo de discurso.

Ainda não há informações se o governo de Benjamin Netanyahu, que como era esperado atacou a decisão do tribunal, vai adotar algumas das ordens emitidas, incluindo sobre a elaboração do relatório — desde o início da guerra, Netanyahu afirma que tem seguido todas as leis internacionais, e que o Exército israelense é o "mais moral do mundo".

Em uma análise sobre o relatório, a edição em hebraico do Hamas cita Tamar Hostovsky-Brandes, professora da Escola de Direito Ono, em Tel Aviv: para a acadêmica, o governo, apesar de relutar muito, deve cumprir a determinação de Haia. Mas o documento em si não será o maior problema.

"Será muito desafiador para o país, se ministros e autoridades eleitas continuarem a se expressar durante este período, de uma forma que é inconsistente com o direito internacional e criticam a sua legitimidade ", disse a professora no texto, em uma referência aos comentários de ministros e parlamentares da base de Netanyahu, incluídos no processo da África do Sul como sendo incitações ao crime de genocídio.

Por sinal, uma das medidas ordenadas pela Corte foi "prevenir e punir" esse tipo de discurso, e é consenso entre especialistas que falas ocorridas nos próximos 30 dias podem ter um peso ainda maior em uma decisão final, que deve levar alguns anos para sair.

Ainda houve espaço para ataques diretos à decisão e à Corte. No Times of Israel, um dos fundadores da publicação, David Horovitz, estampou um título que não deixou muita margem para interpretações mais amenas: "O Hamas veio atrás de todos que pudesse matar em Israel em 7 de outubro. Hoje, Haia o encorajou".

"Deveria ser óbvio, mas aparentemente não é, que se Israel tivesse qualquer intenção de cometer genocídio contra os palestinos em Gaza, não haveria nada que impedisse bombardear Gaza até que não restasse nada. Israel tem uma das mais poderosas forças aéreas do mundo, e tem supremacia aérea absoluta sobre a Faixa de Gaza", escreveu Horovitz. "As medidas ordenadas pela Corte querem conter a capacidade de Israel de se defender, enquanto facilitam a batalha pela sobrevivência do genocida Hamas, e permitem que massacrem israelenses novamente."

''Força de ocupação''
Pelo lado palestino, apesar de alguma frustração com a ausência de uma ordem para a suspensão dos combates, o tom foi de celebração.

"A Corte Internacional de Justiça decidiu que Israel, a força de ocupação, deve tomar todas as medidas para prevenir atos proibidos pela Convenção do Genocídio, e tomar medidas para garantir o atendimento imediato das necessidades humanitárias urgentes da Faixa de Gaza", escreveu a Wafa, a agência de notícias palestina.

Em entrevista à AFP, Diana Buttu, advogada palestino-canadenese e ex-conselheira da Organização para a Libertação da Palestina, lamentou o que ela chamou de "demora" até que alguma decisão fosse tomada no âmbito internacional.

— O problema é que pelos últimos 112 dias Israel tem operado com completa impunidade — afirmou a advogada, que já foi porta-voz da organização hoje liderada pelo presidente palestino, Mahmoud Abbas. — Este momento é uma saída dessa impunidade, porque agora há uma corte dizendo que existe o risco plausível de um genocídio iminente.

Omar Shakir, diretor para Israel e Palestina na Human Rights Watch, enfatiza que a exigência de um relatório feita pela CIJ serve como uma garantia de que haverá algum tipo de supervisão internacional sobre a guerra.

— É uma ordem vinculante com a força da corte mundial para impedir ataques ilegais e restaurar os serviços básicos. Israel poderia ligar uma chave e restaurar a eletricidade e a água, além de permitir a entrada de quantidades suficientes de ajuda e permitir que ela chegasse em toda Gaza — disse à AFP. — Agora cabe aos aliados [de Israel], como Alemanha, EUA e Reino Unido, usarem suas influências para garantir o cumprimento.

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