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GUERRA NA UCRÂNIA

Dois anos de guerra: em conflito cada vez mais violento, russos aproveitam recuo no apoio ocidental

Parcerias com Irã e Coreia do Norte garantiram acesso de Moscou a equipamentos e munições, enquanto Kiev sofre os efeitos de impasses na Europa e EUA

Foto: Yuriy Dyachyshyn / AFP

A madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022 ficou e ficará marcada por décadas na História mundial, mas especialmente nas vidas de ucranianos e russos: naquela noite, Vladimir Putin anunciou o início de uma “operação militar especial” no país vizinho, citando a necessidade de “proteger” os russos étnicos, vítimas de um “genocídio”, segundo o presidente, além da “necessidade de desnazificar” a Ucrânia, termo que até hoje não foi explicado devidamente pelo Kremlin.

Dois anos depois, a guerra que para estrategistas russos deveria ser rápida se tornou um conflito de trincheiras, com dezenas de milhares de mortos, centenas de sanções internacionais e sem solução à vista.

Ao contrário do “aniversário” de um ano da guerra, quando os ucranianos se preparavam para uma contraofensiva de primavera que prometia ser decisiva, o momento hoje é favorável aos russos. Há uma semana, Kiev ordenou a retirada da cidade de Avdiivka, na região de Donetsk — há mais de uma década, antes mesmo da invasão de fevereiro de 2022, a cidade era cenário de combates entre forças ucranianas e militares russos ou separatistas apoiados pelos russos.

“Em uma situação onde o inimigo está avançando sobre os corpos de seus próprios soldados, e com uma vantagem de munição de 10 para um, sob constante bombardeio, essa é a única solução correta”, disse o chefe das forças ucranianas no Sul do país, Oleksandr Tarnavskyi, em comunicado no sábado passado.

Segundo relatos das linhas de frente, algumas das estradas que levam à cidade estão “cheias de corpos” de militares ucranianos, e há denúncias de que alguns dos combatentes foram executados pelos russos. Feridos também teriam sido deixados para trás em meio à retirada, e “centenas” de soldados foram capturados, afirmam fontes militares dos EUA.

— A Rússia consegue uma vitória muito importante em Avdiivka, era um bastião de defesa, uma cidade fortemente defendida, e posicionada de forma estratégica, em uma posição que permite acesso ao interior [da Ucrânia] — disse ao Globo o mestre em Ciências Militares Paulo Filho.

 

Além do simbolismo da conquista, Paulo Filho destaca que ela pode ser o início de uma nova ofensiva russa, com o objetivo de dominar, por completo, as quatro regiões ucranianas anexadas unilateralmente por Moscou — Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson. Ele lembra que a Rússia não controla totalmente nenhuma delas, apesar de tê-las incluído em seus novos mapas oficiais e planejar realizar a eleição presidencial russa em suas cidades, assim como fez na Crimeia em 2018.

— O momento atual não é bom para a Ucrânia, mas sim, é favorável para a Rússia — afirma Paulo Filho, apontando para as mudanças no campo de batalha e nas capitais de apoiadores externos da Ucrânia no último ano.

Após os resultados relativamente frustrantes da contraofensiva do ano passado, quando a Ucrânia não conseguiu retomar tantas áreas importantes, Moscou passou a reforçar suas linhas de defesa. Efetivamente, o conflito que em seus primeiros dias era travado em áreas abertas se metamorfoseou em uma guerra de trincheiras, similar ao visto na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com milhares de mortes a cada avanço de poucos metros.

— Estamos observando o que considero ser uma nova fase do conflito. Nós observamos hoje uma facilidade do Exército russo para consolidar posições em postos estratégicos importantes, em especial ao centro da linha de defesa [no Leste] — declarou ao GLOBO Daniela Secches, professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas. — Consolidada essa posição, ela (Rússia) fica como, de fato, o Estado que administra essa região, mas essa área não é reconhecida de jure, ou de direito, como um território que pertence à Rússia.

Novos (antigos) parceiros
Um fator importante para essa mudança favorável à Rússia é o apoio externo, ou a falta dele. Ao longo do último ano, Moscou estreitou laços com Irã e Coreia do Norte, incrementando o acesso a equipamentos como drones de ataque e, especialmente, a munições e foguetes de curto alcance.

Após a visita do líder norte-coreano Kim Jong-un ao Extremo Oriente russo, onde se encontrou com Vladimir Putin, informações de inteligência revelaram viagens de navios de carga entre portos dos dois países. Em novembro do ano passado, o governo da Coreia do Sul disse que mais de um milhão de munições de artilharia norte-coreanas foram enviadas para Moscou, número que vem aumentando desde então. Imagens de satélite mostraram ainda a construção de uma fábrica dentro da Rússia para a produção dos drones Shahed-136, de tecnologia iraniana e usados à exaustão na Ucrânia.

— Esse apoio do Irã e da Coreia do Norte fizeram e fazem muita diferença na guerra — opinou Paulo Filho.

Pelo lado ucraniano, o terceiro ano da guerra começa com mais dúvidas do que certezas. Números do Instituto Kiel, da Alemanha, revelam uma forte queda no envio de ajuda a Kiev em 2023, tendência que parece se manter nos primeiros meses de 2024.

O símbolo maior desse momento é o fracasso do governo de Joe Biden em aprovar um pacote de US$ 60 bilhões em apoio militar no Congresso — a iniciativa, que integra um plano que prevê ainda ajuda a Israel, tem enfrentado oposição de republicanos e até democratas. Em discursos recentes de campanha, o ex-presidente Donald Trump, que tentará voltar à Casa Branca, tem sinalizado que poderá cortar esse apoio caso vença Biden em novembro.

— É uma agenda que tem diminuído de relevância na pauta de política externa nos EUA, muito em virtude da questão em Gaza e da questão do prolongamento do conflito — diz Secches. — Mas essa será uma pauta bastante quente das eleições, no sentido que será muito mais custoso para o Biden manter essa defesa de um apoio mais irrestrito à Ucrânia.

Os movimentos em Washington e em Bruxelas têm efeitos devastadores para os ucranianos. Os estoques de munição estão cada vez mais baixos, e os envios externos, não apenas dos EUA, estão menores do que o necessário — em janeiro, a União Europeia afirmou que só conseguiria mandar metade das munições de artilharia prometidas para o início de 2024. Em uma guerra de atrito, como a da Ucrânia, são atrasos podem pôr em risco a defesa contra um Estado invasor.

"O velho ditado ainda é verdade: o lado com a maior quantidade de munição para lutar geralmente vence", escreveu o ministro da Defesa ucraniano, Rustam Umerov, em carta ao chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, obtida pelo Financial Times.

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