Dois em cada três policiais assassinados no Brasil são pretos ou pardos
As franjas das cidades são onde vive a maioria da população negra morta em ações policiais e a porção principal das vítimas de crimes violentos intencionais, como homicídios e latrocínios –também ela majoritariamente negra
O soldado Vitor de Oliveira Farias, 33, estava de serviço na região do Jardim Ângela, extremo sul da capital paulista, na manhã de 23 de junho do ano passado, quando recebeu a comunicação de um roubo em andamento. Foi até o local e conseguiu render um ladrão.
Surgiram, porém, dois outros criminosos em uma moto e passaram a atirar contra ele. O PM chegou a ser socorrido, mas não resistiu aos ferimentos. Morreu deixando mulher e sete filhos. Dados do Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostram que o caso de Farias não é isolado. A maioria (65,1%) dos 172 policiais assassinados no Brasil em 2019, de folga ou em serviço, era como ele: negro.
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Para o diretor-presidente da entidade, Renato Sérgio de Lima, esses números podem ser explicados por uma junção de fatores.O primeiro deles seria o fato de os policiais negros morarem em bairros periféricos.
As franjas das cidades são onde vive a maioria da população negra morta em ações policiais e a porção principal das vítimas de crimes violentos intencionais, como homicídios e latrocínios –também ela majoritariamente negra.
Segundo os números do FBSP, oito em cada dez suspeitos mortos pelas forças de segurança são negros (79,1%). Já as vítimas de crimes violentos são três em cada quatro (74,4%). "Os policiais negros moram onde moram os demais negros, em geral bairros pobres e de periferia, lugares onde há taxa de violência", diz Lima.
"Os policiais que estão morrendo são, em geral, de nível operacional e são recrutados no mesmo segmento socioeconômico que concentra o maior número de negros. Então, os policiais e jovens que estão sendo mortos fazem parte do mesmo segmento socioeconômico e demográfico e que, em geral, mora nas periferias", afirma ele.
Os policiais negros são as principais vítimas mesmo não sendo maioria nas forças policiais no país. Lima explica que isso se deve ao fato de haver mais negros entre os praças (de soldado a subtenente) do que entre os oficiais (de tenente a coronel), que exercem funções de comando.
São esses policiais subalternos das corporações os que estão na linha de frente do combate ao crime, tornando-se assim mais sujeitos a serem vítimas. Segundo dados obtidos pela reportagem, do total de soldados da Polícia Militar de São Paulo, 44,% são negros. Entre os oficiais, esse número cai, indo de 22,1%, entre os tenentes, a 12,7%, entre os coronéis –topo da carreira (veja quadro).
Ainda de acordo com números obtidos pela reportagem, o número de policiais negros assassinados no ano passado em São Paulo fica bem abaixo da média nacional. Segundo a corporação, dos 34 PMs paulistas mortos, em folga ou em serviço no ano passado, 10 eram negros –entre eles Farias. Isso representa 29% das vítimas policiais.
Neste ano, ainda de acordo com a PM, a proporção segue semelhante. Até o início de outubro, dos 29 policiais mortos, 8 eram negros (31%). O advogado Abelardo Júlio da Rocha, 55, oficial da reserva da PM de SP e diretor jurídico da Associação de Defesa dos Agentes de Segurança, diz concordar em parte com a avaliação de Lima, em especial quanto à moradia periférica como fator determinante.
Ele, que é negro, nega contudo que haja relação entre o alto índice de policiais pretos e pardos mortos e o racismo.
"É um caldo de componentes que, associados, provocam uma alta concentração de negros entre policiais mortos." Para ele, o número de negros mortos, tanto entre os civis quanto entre os policiais militares, não tem a ver "propriamente com a cor da pele".
Ele destaca o fato de que quase todas as equipes da PM têm ao menos um negro entre seus componentes. "A Polícia Militar é a instituição que mais emprega negros do país. Como negros vão discriminar negros?", indaga ele, que afirma nunca ter sofrido racismo na profissão.
Sua constatação não é aceita unanimemente. Para a presidente da comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, a Polícia Militar age segundo a ótica de que todo negro é suspeito. Das 775.274 pessoas privadas de liberdade em 2019, ainda segundo dados do Anuário 2020 do FBS, 66,7% são negras. Em São Paulo, pretos e pardos são 59,3% dos encarcerados.
Mais do que suspeitos, diz Maria Sylvia Oliveira, os negros são vistos como inimigos a serem eliminados, na "absurda lógica de guerra" da PM. Ela insere os dados sobre a violência contra a população negra em um processo histórico de exclusão e marginalização que faz com que "extermínio de corpos negros" seja naturalizado, não causando comoção na sociedade.
"Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública nos informam que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, e esses números não causam comoção e não mobilizam a sociedade para acabarmos com essa barbárie, com o genocídio da população negra", diz ela, lembrando o assassinato de Beto Freitas, 40, por espancamento, em um supermercado em Porto Alegre na noite desta quinta (19).