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Coronavírus

'É difícil tratar de uma nova normalidade', diz socióloga Andrea Butto sobre pandemia do coronavírus

Em entrevista à Folha de Pernambuco, socióloga fala sobre como a sociedade vai lidar com o “novo normal” e as consequências deixadas pela pandemia do coronavírus

Socióloga Andrea ButtoSocióloga Andrea Butto - Foto: Jose Britto/Arquivo Folha

Doutora em Sociologia pela Universidade Rural de Pernambuco (UFRPE) e mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a socióloga Andrea Butto fala sobre como a sociedade vai lidar com o “novo normal” e as consequências deixadas pela pandemia do coronavírus. Para a especialista, que é diretora do Departamento de Ciências Sociais da UFRPE, o vírus escancarou diferenças sociais que precisam de atenção, mas ao mesmo tempo estimulou o espírito de solidariedade entre as pessoas. Butto ressalta ainda que uma série de políticas públicas deverão ser estimuladas para contornar os problemas causados ou aguçados pela Covid-19.

O que será aquilo que estamos chamando de "novo normal" e como as relações sociais serão afetadas por ele?
 
Esse novo normal é do medo, da distância. É difícil tratar de uma nova normalidade. O que muitos analistas estão falando é que o futuro é agora, no sentido de que essa forma de vida que estamos passando ainda vamos experimentar por um longo tempo. Ficará uma forma um tanto quanto nostálgica de vida à medida em que estamos separados e com condições muito difíceis de se manter conectados com entes queridos. Fica também essa marca do luto social que vamos precisar redimensionar. Mas acho que essa nova normalidade também nos dá a possibilidade da criatividade, da solidariedade. Claro que elas não foram amplas como deveriam ter sido, mas fez parte de muitas pessoas que antes estavam em uma lógica individualista, muito focados no seu cotidiano, em suas relações familiares ou no seu círculo de trabalho e passaram a se sensibilizar para uma dimensão de garantia de direitos humanos, do apoio que não é só econômico, mas também emocional.

Qual é a gravidade dessa emergência global e como podemos tirar proveito da crise?

No primeiro aspecto há a dimensão de uma crise que se dá no plano das relações dos seres humanos com a natureza. Há uma série de evidências e pesquisas que associam o surgimento do vírus a animais na China. Isso traz ao debate esse manejo de animais em confinamento em condições que propiciaram o surgimento de vírus e nos mostra por si só essa relação inadequada com os animais. Há uma falta de gestão global em vários aspectos, inclusive sanitário, que a gente vivenciou. Países com condições econômicas mais privilegiadas estabeleceram regras de proteção adequadas e conseguiram conter a pandemia, outros países que por uma condição econômica desprivilegiada ou por uma visão conservadora expuseram muito mais sua população inicialmente à pandemia e depois tiveram que adotar medidas mais restritivas do convívio social. Pensando nos aprendizados eu diria que algo muito importante disso tudo é o resgate de práticas solidárias. Essa ideia de cuidar do vizinho, dos amigos, prestar solidariedade em áreas periféricas, pensar alternativas no ambiente acadêmico, alianças políticas que foram se estabelecendo entre os movimentos sociais de forma unificada para pensar as saídas para esse momento.

O coronavírus entrou no Brasil, assim como na maioria dos países, pela classe média e alta. O que isso revela sobre nossa sociedade? As ações de combate seriam as mesmas se a doença se espalhasse primeiro nas periferias?

Se a doença tivesse se iniciado por outros extratos econômicos provavelmente teríamos outras medidas. Mas algo muito importante em relação a isso é que não podemos refletir sobre essa pandemia sem considerar as desigualdades de classe e outras desigualdades sociais. É muito distinto conviver com essa doença e se proteger frente a pandemia numa condição em que há desemprego, insegurança alimentar, ausência de abastecimento de água, que é preciso se deslocar em transporte urbano em condições extremamente lotados, se expondo a doença. A gente não pode pensar essa dinâmica da pandemia sem associar a essas dimensões de desigualdades que a gente vivencia e se agudizaram durante o período de pandemia. Fica essa questão de repensar esse modelo de aglomerados urbanos, transporte público caro e precário, sistema de abastecimento alimentar extremamente concentrado.

Qual o cenário dos próximos anos? O que esperar para a próxima década, principalmente aqui no Brasil?

A gente tem um cenário negativo no sentido da intensificação da crise econômica gerada pela pandemia. No Brasil, teremos as eleições municipais em alguns meses e daqui a dois anos outras eleições, mas não havendo mudança no comando político brasileiro teremos uma situação ainda pior porque a pandemia foi vivenciada por esses governantes como uma brecha para aprofundar o modelo neoliberal no Brasil. Todas as saídas que esse governo pensa para custear a doença  passam pela privatização dos serviços públicos e sabemos que quando isso ocorre quem paga o preço são as populações pobres que não têm acesso e condições de pagar por serviço privado. Há um cenário ruim, mas que pode ser revertido pelo crescimento da resistência a esse modelo ultra neoliberal do governo Bolsonaro, que foi se fortalecendo com práticas de solidariedade. 

Em termos de arranjos de política pública, quais caminhos devemos seguir para evitar futuramente situações caóticas como a que estamos testemunhando nessa pandemia? 

A gente precisaria ter um pacote muito forte e sólido em termos de política social para garantir acesso a renda, a serviços públicos, o que implica em não privatizar serviços, diferentemente do que vem sendo praticado. É preciso preservar direitos que a gente conquistou na constituição a exemplo dos trabalhistas, previdenciários. É preciso garantir uma política educacional. Vamos ver um cenário de evasão de estudantes que não vão conseguir conciliar trabalho com a formação profissional. Serão muito pressionados a abandonar os estudos em função dessa crise. Então, é fundamental ter política educacional que pensa não apenas na formação de qualidade acessível, mas também política de assistência aos estudantes mais carentes. No campo da saúde proteger esse sistema público que temos e, claro, dar as condições para que a gente possa fazer um atendimento mais amplo e não focado apenas na pandemia. Aumentaram muito a fome e o desemprego. Para lidar com isso não podemos deixar a população desistida sem alternativa. Teremos que ter política pública muito firme de geração de emprego e renda. São agendas desafiadoras que já estão na pauta e devem se intensificar daqui para frente.

Quais podem ser os efeitos do confinamento prolongado na sociedade?

Há uma dimensão emocional muito forte, especialmente para pessoas que vivem sozinhas ou idosas, que ficaram com uma limitação muito importante para garantir assistência de serviços e cuidados pelos maiores riscos a doença. Há uma dimensão de saúde. Muita gente está vivenciando dificuldades para lidar com esse isolamento. Não somos todos iguais. Enquanto há pessoas que conseguem se conectar com outras atividades ou se manter conectado com amigos, com uma rede de convivência, outras não tiveram capacidade de fazer isso ou não têm facilidade para fazer e viveram o confinamento de uma forma muito mais cruel. Vamos ver as marcas desse adoecimento no convívio social no período posterior. E fica ainda esse efeito econômico, da violência, das sequelas intrafamiliar que se experimentou nesse período da pandemia e deixará marcas nas famílias.

Na próxima sexta-feira, serão celebrados os 30 anos das Ciências Sociais na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Qual a importância da data no atual momento que passamos?

Não estamos querendo apenas dar visibilidade a essa história e o que foram agendas de pesquisa. Já formamos mais de 970 bacharéis em ciências sociais, realizamos muitas atividades de extensão e pesquisa, contribuímos com diferentes programas de pós-graduação, o que torna a data muito significativa. Os momentos de fortalecimento das ciências sociais são muito associados a processos de democratização do nosso País e o que a gente está vivendo no momento é justamente o inverso disso. Então, em momentos de perdas e rupturas democráticas como essa que estamos vivenciando atualmente recebemos muitos ataques. Isso se manifesta na retirada do ensino da sociologia no ensino médio, na retirada das ciências humanas como dimensão importante do plano nacional de pós-graduação no Brasil, cortes de verbas em editais de pesquisa para essa área de estudo, além do ataque mais amplo à educação pública. Ataques com dimensão econômica, institucional e ideológica atuando juntas, fazendo com que a gente não apenas tenha que trabalhar em condições muito mais precárias, mas sendo alvo de contestação cotidianamente.

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