É irônico brancos serem tão sensíveis a falar de raça, diz autora de livro sobre antirracismo
Robin DiAngelo, autora de livro há 111 semanas na lista dos mais vendidos nos EUA, fala de branquitude, privilégio e negação do racismo sistêmico
O mito da democracia racial é uma ideologia daltônica que funciona para proteger a hierarquia de raça da sociedade brasileira ao simplesmente negar que ela exista.
É assim que a norte-americana Robin DiAngelo, consultora em questões de justiça social e racial e autora de "Não Basta Não Ser Racista: Sejamos Antirracistas" (Faro Editorial), avalia um aspecto central na história das relações raciais no Brasil.
Professora de educação da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), Robin cunhou o termo "fragilidade branca", título original deste best-seller que está a nada menos de 111 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times.
A expressão designa a dificuldade de pessoas brancas de conversar sobre racismo e reconhecerem a si próprias como beneficiárias, ainda que involuntariamente, de um sistema que as valoriza em depreciação de outros grupos étnico-raciais.
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"A identidade branca tem sido usada para desprezar a análise racial, rotulando tudo como 'politicamente correto', e interditando o debate ao acusá-lo de identitário, alegando que é preciso falar de todos, de maneira inclusiva", explica ela.
"É como dizer Black Lives Matter [vidas negras importam] e alguém retrucar que todas as vidas importam [all lives matter]. É claro que todas as vidas importam, mas, num mundo em que isso não ocorre na prática, precisamos nomear quais vidas, afinal, parecem não importar."
Robin participa, nesta segunda-feira (26), da abertura do encontro Branquitude: racismo e antirracismo, organizado pelo Instituto Ibirapitanga com a co-curadoria de Lia Vainer Schucman.
Ao longo de três dias e cinco debates transmitidos ao vivo pelo canal do Ibirapitanga no YouTube, o encontro pretende refletir sobre as relações raciais no Brasil e os caminhos para a desconstrução do racismo estrutural.
"A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça", brinca Robin.
Folha - Do que falamos quando falamos de privilégio branco?
DiAngelo - Privilégio branco é a vantagem automática que as pessoas brancas têm por viverem numa sociedade em que elas são valorizadas e, na maior parte dos casos, controlam e dominam. É como nadar numa correnteza. Há pessoas que estão batendo braços e pernas, mas a correnteza favorece seu deslocamento mesmo sem que elas percebam. E há outras pessoas também batendo braços e pernas, mas a correnteza faz resistência constante a seu movimento.
Só que quando é apontado que as pessoas brancas têm uma vantagem automática imerecida, elas ficam bastante defensivas. Interpretam que essa vantagem é uma acusação de que elas não trabalharam duro o suficiente para estarem onde estão. E eu preciso ser clara: sim, nós trabalhamos duro. Mas o sistema nos recompensa por esse trabalho de maneira diferente. E nós não estamos trabalhando duro contra uma resistência racial. Outro jeito de olhar para o privilégio branco é observar o voto das mulheres.
Folha - Como assim?
DiAngelo - E eu me refiro ao sufrágio como o momento em que homens nos concederam direitos civis, como apenas eles poderiam fazer. Antes disso, mulheres poderiam ser preconceituosas em relação a homens ou discriminar homens individualmente, mas não podiam, coletivamente, negar para todo e qualquer homem seus direitos civis.
Os homens podiam. Por que? Porque os preconceitos deles eram sustentados por autoridade legal e controle institucional. E essa é a chave para diferenciar o viés racial, que todos temos, de racismo. Racismo é quando preconceito e discriminação são sustentados por poder.
Folha - Por que é tão difícil reconhecer privilégios?
DiAngelo - Por causa de algumas ideologias. Uma é a meritocracia: somos ensinados que temos o que temos porque trabalhamos pra isso e merecemos.
Ninguém nega que pessoas negras estejam em pior situação a partir de qualquer dado que se observe. E só existem dois jeitos de explicar essa situação. Ou as pessoas negras são inferiores e somos, os brancos, superiores. Ou existe racismo estrutural!
E, se você negar a existência do racismo estrutural, é porque está usando uma chave explicativa racista.
A outra ideologia que incide nessa dificuldade de reconhecer privilégios é o individualismo. Ainda que exista um crescente movimento nacionalista branco, a maior parte das pessoas brancas, no nível consciente, acredita em justiça racial e não quer, intencionalmente, que pessoas negras sofram.
Folha - Se a maioria acredita em justiça racial, como existe racismo?
DiAngelo - Eu, que sou branca, não nasci conhecendo o racismo, mas eu aprendi o que é racismo e supremacia branca.
Ainda antes de eu nascer, as forças do racismo e da supremacia branca opearvam a minha vida: por serem brancos, meus pais podiam viver em qualquer lugar que pudessem pagar e eles dificilmente seriam discriminados em serviços de saúde. Mas quem entrou no quarto da maternidade na noite em que eu nasci para limpar o chão e recolher o lixo foi muito provavelmente uma pessoa negra.
Ou seja, eu nasci e fui criada num ambiente racialmente hierarquizado que me influenciou. Pesquisas mostram que crianças de 3 ou 4 anos entendem que é melhor ser branco. É um processo que se consolida muito cedo.
Folha - Como explicar o privilégio branco em relação a pessoas brancas desprivilegiadas?
DiAngelo - Pessoas brancas sem dúvida sofrem outras formas de opressão e também enfrentam barreiras, mas o racismo não é uma delas, o que as ajuda. Você pode pensar em qualquer grupo minoritário, como mulheres e pessoas LGBTI, e, dentro deles, as pessoas negras também vão estar nas piores posições.
Eu sei que o classismo é algo poderoso no Brasil e sei que racismo e classismo têm grande intersecção, o que faz com que classe e raça pareçam ser quase a mesma coisa. Mas não é.
Eu cresci em situação de pobreza urbana dos EUA. Minha família ficou sem casa e morávamos no nosso carro. Eu tinha uma sensação muito profunda de vergonha de classe. Mas eu não sou menos racista ou tenho menor privilégio racial porque experimentei o classismo.
Folha - Você poderia dar um exemplo dessa relação entre hierarquia social e hierarquia racial?
DiAngelo - Vivemos em situação de rua, pasamos fome... E, ao mesmo tempo, eu fui ensinada a não tocar em nada que uma pessoa "colored" [termo pejorativo usado para se referir a uma pessoa negra] havia tocado. Mesmo quando fosse comida e estivéssemos com fome.
A mensagem era clara: estará sujo se uma pessoa negra tiver encostado. Mas a verdade era que, por causa da situação de rua, nós é que éramos sujos. Só que, nesses momentos, eu não sentia tanta vergonha da minha pobreza porque eu me realinhava com a cultura branca de classe média dominante contra um outro racializado.
Folha - Qual é, então, a fragilidade branca?
DiAngelo - A fragilidade se refere à hipersensibilidade da branquitude quando confrontada com questões de raça, que as faz reagir ficando chateadas, bravas ou defensivas. Mas o impacto dessa fragilidade não tem nada de frágil.
É bastante poderosa porque vem amparada na autoridade legal e no domínio institucional. Funciona como um policiamento racial. Tornamos tão punitivo para pessoas negras nos desafiarem e nomearem essas dinâmicas que, na maior parte das vezes, eles simplesmente decidem não falar.
É mais um jeito de silenciar pessoas negras. A grande ironia é justamente as pessoas brancas serem supersensíveis quando o assunto é raça.
Folha - Para quais mudanças o assassinato de George Floyd e os protestos que o seguiram apontam?
DiAngelo - Conceitos como o de racismo sistêmico entraram no debate principal. E isso é fundamental. Porque enquanto continuarmos a achar que uma pessoa racista é alguém intencionalmente mau, que quer machucar os outros, não vamos sair deste lugar.
E não existe nada melhor para eximir as pessoas brancas do que permitir que elas se ofendam quando confrontadas com essa acusação, o que protege perfeitamente o sistema do racismo. Eu diria que todo racismo que eu perpetrei na minha vida, e foi bastante, não foi algo consciente e intencional, mas machucou as pessoas do mesmo jeito.
É preciso olhar como isso se manifesta na sua vida, no seu trabalho, nas suas relações. E isso é muito libertador!
E então você pode parar de achar que você está sendo acusado de ser mau. E se liberar para alinhar o que você diz acreditar, que é a justiça racial, com o jeito como você se posiciona e age no mundo. '`" por isso que o oposto do racismo não é sua ausência, mas o antirracismo.
Robin DiAngelo
Consultora e educadora há mais de 20 anos em questões de justiça social e racial, e professora da Universidade de Washington, em Seattle (EUA). Seu livro, "Não basta não ser racista: sejamos antirracistas" ("White Fragility: Why It's So Hard For White People To Talk About Racism"), está há 111 semanas na lista de mais vendidos do NYT.