MULHER

E se o padrão for não ter padrão? Questionada, busca de mulheres por "beleza ideal" tem reviravolta

Comportamentos e autoestima são principais fatores atingidos por mulheres que buscam "alcançar" estereótipo de beleza; psicóloga faz alerta

"Se você for para uma ilha deserta, esse detalhe seria realmente uma coisa a querer mudar, ou você está se comparando?", questiona Carolinne"Se você for para uma ilha deserta, esse detalhe seria realmente uma coisa a querer mudar, ou você está se comparando?", questiona Carolinne - Foto: Jackson Ferreira da Silva/Infoco Studio

Realizar um sonho de infância. Comemorar uma vitória do seu time de futebol. Concluir um projeto. Alcançar uma promoção no trabalho. Iniciar um curso na pós-graduação. Esses objetivos podem ser conquistados, entre outros fatores, depois de um trajeto de preparo e empenho. Mas como alcançar o que não existe?

Esse questionamento foi levantado pela psicanalista Manuela Xavier, que também é apresentadora e autora do livro “De Olhos Abertos”, lançado no ano passado com abordagem voltada à temática do relacionamento amoroso abusivo.

Manuela publicou um vídeo nas suas redes sociais (veja a seguir), no último dia 21, e em menos de quatro minutos foi capaz de gerar reflexões sobre a imposição social dos padrões de beleza às mulheres, e ainda a respeito de uma busca incessante para alcançar o que sequer é real, já que cada beleza é única e dependente de fatores individuais.

À Folha, ela revelou que tirou motivação de momentos próximos para trazer o tema à tona. E apesar de satisfeita com os desdobramentos, não acredita ter encerrado o debate. “Tenho ouvido muitas amigas magras e que vestem 40, dizendo que estão gordas, porque tiraram férias, viajaram e engordaram três quilos. Se veem de uma forma pervertida, por conta da lente do padrão, que não existe. Fiquei muito feliz com a repercussão do vídeo. É como se eu tivesse trazido um alento. Acho que não cumpriu a missão, porque ela é contínua”, ponderou.

Expandindo a questão para um cenário fora do seu convívio, ela frisou que o fantasma do padrão estará assombrando as mulheres de forma contínua, tornando-as reféns de maneira cíclica.

“Não há nenhuma mulher que não esteja entre as imposições sociais. Por mais que a gente recuse e esteja bem resolvida, ainda é afetada. Recentemente fui procurada por uma empresa de emagrecimento. Sou 'cutucada' quando perguntam se estou fazendo dieta e isso me atravessa. Não importa o quão próxima do padrão a mulher esteja, ela ainda vai ter quilos a perder e colágeno e botox para fazer”, exemplificou, antes de fazer um recorte também do que presencia diariamente em seu ambiente de trabalho.

“Trabalho com moda e circulo nesse meio e acho incrível, mas a gente precisa falar sobre moda, não aparência. Nos tapetes vermelhos, vemos muitas referências de moda desfilando nas premiações, onde temos que ver roupas, looks, joias e maquiagens, mas os comentários feitos são sobre como tal modelo envelheceu, como fulana engordou e estava com a maquiagem errada”, exemplificou.

“A gente comenta a aparência do outro ou os talentos?”, refletiu.

 As passarelas não são os únicos caminhos a serem questionados. “Precisamos construir outras referências e esse é um esforço coletivo. Quem são as influenciadoras que você acompanha nas redes sociais? As cantoras que você escuta? Quando olho para essas mulheres, vou entendendo que eu também sou bonita e não tem nada de errado comigo. Esse é o nosso papel enquanto civis. Temos que educar o mercado sobre quem são as mulheres que queremos que estampem capas de revistas e sejam protagonistas em filmes e novelas. Reparar esse dano é construir outros imaginários”, projetou otimista.

Essa reflexão, para Manuela, é a garantia da construção de um ambiente mais acolhedor. De amiga para amiga.

“Quando a gente encontra uma amiga querida, que a gente possa dizer que estava com saudades, não elogiar porque ela emagreceu, ou que ficou muito bem loira ou morena”, afirmou.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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A moda é amiga, não vilã
Assim como Manuela, a consultora de imagem e psicanalista Millena Lins, de 24 anos, tenta fazer da moda uma aliada na busca pela autoaceitação.

“Eu amo a moda e amo o que ela pode fazer nas pessoas. Trabalho usando a moda como ferramenta na imagem pessoal, muito além de vestir, mas comunicando quem você é através das suas roupas. Fazendo você enxergar da forma como realmente é, e comunicando isso pro mundo da melhor forma. Tenho como propósito ajudar mulheres a revelar quem elas são de dentro pra fora, mudando a forma como se enxergam para se verem de forma saudável”, disse orgulhosa.

Milena fez questão de lembrar que a pressão para se enquadrar nas normas tidas como adequadas pode, inclusive, acarretar na necessidade de acompanhamento de profissionais da saúde.

“O padrão ideal de beleza influencia demais psicologicamente as mulheres, fazendo com que elas não valorizem a forma como são, optando muitas vezes por mudar algo em seu corpo para ‘participar’ do padrão de beleza. Alguns casos precisam de ajuda profissional para tratar questões como traumas e inseguranças, que podem ter sido formadas desde a infância”, lamentou.

Perceber o equilíbrio  e naturalizar o que vê no reflexo do espelho é o início para tornar a busca por beleza uma procura saudável.

“Acho que a busca por se cuidar deve ser tarefa de qualquer pessoa, porque isso revela parte do autocuidado,  mas precisamos ficar atentos. Precisa ter equilíbrio. Precisamos nos cuidar para estarmos satisfeitas com o que vemos no espelho, mas sem ficarmos desesperadas por um padrão que muitas vezes é inalcançável”, frisou por fim.

Espelho, espelho meu…
A estudante Clarice Siqueira, de 22 anos, está entre as pessoas com Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) no Brasil. Estudos estimam que esse número seja de aproximadamente quatro milhões em todo o país. No mundo, o montante é de quase 2% da população total. 

“Tenho distorção de imagem, que é um problema psicológico no qual você se enxerga diferente da realidade, e normalmente numa versão negativa. Eu me vejo muito gorda sendo uma mulher de 1,65 de altura e que pesa 66 quilos. Não enxergo meu corpo com mais gordura ou pele que ele tem, tenho noção que não estou em sobrepeso, mas mesmo vendo exatamente como ele está, tenho a sensação que estou maior, inchada e desproporcional”, revelou.

Essa sensação, segundo ela, passa a ser ainda mais recorrente por conta da pressão da sociedade, que acaba refletindo em todas as áreas da vida.

“Influencia na forma de agir, se vestir, absolutamente tudo. A mulher tem que estar constantemente suprindo padrões sociais e isso gera muita pressão, principalmente nas mulheres que não têm como aderir a esse padrão. É muita cobrança”, afirmou.

Na visão de Clarice, a “virada de chave” para uma mudança passa pelo questionamento dos modelos apresentados como objetivos a serem alcançados, e também pelo entendimento de autocuidado e do respeito aos próprios limites.

“Reproduzir constantemente essas quebras de padrão, trazer sempre a realidade dos corpos, mostrar mulheres reais, promover práticas saudáveis e mostrar os limites entre se cuidar e adoecer. Acho que se cuidar não se trata de ser magra, musculosa ou maquiada, mas de respeitar seus limites, viver bem e trazer conforto para si diariamente. É sobre aceitação”, concluiu.

Vai ter miss gorda sim!
Coroada neste ano como Miss Continente Plus Size Recife, Primeira Princesa Continente Plus Size Pernambuco (2º lugar) e Miss Popularidade Continente Plus Size Pernambuco, a pernambucana Carolinne de Lima Bastos, de 34 anos, detalhou o sentimento de resistência por estar entre os nomes do meio da beleza em uma sociedade que aponta o “modelo ideal” de corpo, vestimenta e comportamento. 

Os passos até a coroação carregam consigo marcas desde a época da infância, quando ela diz que os sinais da “padronização” começam a se voltar para o lado feminino.

Carolinne de Lima Bastos, de 34 anos, defende que ideal de beleza passa pela felicidade | Foto: Jackson Ferreira da Silva/Infoco Studio

“Quando criança, é posta uma forma de padrão para que todas sejam iguais. Quando nos deparamos com as diversidades da vida, temos dificuldade de nos aceitar e nos amar como somos, já que fomos ensinadas sempre a amar o ideal de beleza. Tudo que é diferente disso, é um problema”, iniciou.

Muitas dessas marcas são divididas até os dias atuais entre Carol e suas amigas. Para reparar as cicatrizes, ela diz sempre repetir uma pergunta em voz alta ao grupo.

“Se você for para uma ilha deserta, esse detalhe seria realmente uma coisa a querer mudar, ou você está se comparando?”

Outra resposta que ela faz questão de encontrar em si própria é a beleza como consequência da felicidade. E fazer isso com a cabeça erguida por uma coroa aumenta a responsabilidade.

Carolinne detalhou, em entrevista à Folha, o que chama de "perfeição do corpo gordo"  | Foto: Jackson Ferreira da Silva/Infoco Studio

“Ser feliz é o ideal de beleza. É um presente entender que represento mulheres, é algo especial e muito importante. Me sinto com uma responsabilidade boa por mostrar o que tenho de melhor em mim”, afirmou.

Apesar disso, não é porque o cenário é marcado pela representatividade que não há padronização. “Existe a perfeição de corpo gordo. Não pode ser gorda demais, nem parecer ter menos quilos para uma gorda. Em todo local temos que quebrar esses padrões sociais”, revelou.

A beleza que há no poder de escolha
A autônoma Kelly Pires, de 32 anos, inseriu um cronograma de treinos de musculação e crossfit na sua rotina diária, como forma de impulsionar o seu bem-estar. Aliando esse cuidado a uma dieta balanceada e atenção aos sinais do próprio corpo, ela consegue escolher formas de perceber a beleza e se respeitar.

“Eu treino todos os dias, de domingo a domingo, faço crossfit há dois meses e musculação há um bom tempo. Mas quando me sinto cansada, ou quando não tenho tempo, não vou treinar e está tudo bem”, disse.

Alcançar essa maturidade na forma de pensar não foi fácil. Nem linear. 

Entre os altos e baixos da maternidade, ela se viu coberta de fragilidade e inseguranças logo após o nascimento da sua filha Valentina, nome que tem registrado na pele e no coração. Hoje a garota tem sete anos.

“O nosso corpo muda muito. Fiquei desconfortável em ir à praia, por exemplo. A sensação era de que nada ficava bonito ou combinava com o meu corpo”, relembrou.

Kelly vê com riscos o contato negativo de muitas mulheres com os padrões de beleza “forçados” pela sociedade, sendo a perda da identidade um dos efeitos.

“O padrão de beleza influencia a partir do momento em que você distorce a sua imagem e cria uma figura baseada no que você vê em outras mulheres, muitas vezes em uma vida que não é sua. Existe sim uma busca desesperada por muitas mulheres, muitas entram realmente em risco”, alertou.

Atualmente, a empatia está incorporada à rotina de treinos dela, que vê nessa capacidade uma alternativa de construção social mais justa, sobretudo para o gênero feminino.

“Precisamos ser mais gentis. Não rotular nem debochar, fazer ‘pouco caso’ das limitações e problemas das outras. Nós, mulheres, somos lindas, preciosas e guerreiras. Empatia é um exercício diário e constante”, ressaltou.

O que diz a psicologia
Psicóloga clínica especialista em Gestalt-terapia, Beatriz Dias, de 25 anos, listou algumas das principais reações que acometem a saúde mental das mulheres inseridas no contexto da obrigatoriedade de cumprir requisitos que formam o padrão de beleza. 

Beatriz Dias vê potencial de desenvolvimento de depressão por conta de imposição de "regras" da beleza | Foto: Clarice Melo/Folha de Pernambuco

A depressão, inclusive, foi uma alteração colocada pela profissional como recorrente em casos assim.

“Acaba se tornando angústia, frustração e sentimento de culpa, podendo afetar de modo negativo o psicológico da mulher, a ponto de desenvolver distúrbio afetivo de depressão, e vários outros transtornos, experienciando sentimentos de rivalidade e comparação com outras mulheres”, iniciou.

O diagnóstico levantado pela estudante Clarice Siqueira também foi abordado pela psicóloga. “Com o Transtorno Dismórfico Corporal, mais conhecido como distorção de autoimagem, a pessoa passa a ter foco obsessivo em características consideradas inadequadas para sua aparência. Consequentemente, perde a capacidade de reconhecer de forma realista o formato e a beleza de seu corpo. É possível perceber um aumento nos casos de depressão, transtornos de ansiedade, distúrbios alimentares e comportamentos compulsivos”, alertou.

Psicóloga Beatriz Dias fala sobre importância de valorizar própria personalidade | Foto: Clarice Melo/Folha de Pernambuco

O empoderamento possibilitado através do amor próprio foi classificado como uma das ferramentas mais fortes no combate à tentativa de padronização de moldes. A percepção de gostos próprios também foi evidenciada.

“É importante gostar de si e estar confortável com o próprio corpo. É preciso, antes de qualquer coisa, que a pessoa se conheça para que valorize todos os aspectos de sua personalidade. Assim, não se tornará refém de demandas e ofertas que retirem sua integridade física, moral, emocional e espiritual. A beleza é algo muito subjetivo, pois o que pode ser bonito para uma pessoa, para outra já não é. O empoderamento é um pilar nesse caminho, permitindo que cada mulher se sinta confiante e valorizada em sua própria pele”, encerrou Beatriz.

Não é de hoje
De acordo com o sociólogo Josias de Paula Júnior, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a presença dos padrões de beleza na sociedade não é novidade, nem algo exclusivo do Brasil, e surgiu com o intuito de mostrar poder.

“Em todas as grandes sociedades que conhecemos existiam padrões. No Egito, na Grécia e na Roma, por exemplo. Sempre que aconteceu complexificação da estrutura social, com grupos se diferenciando em funções e hierarquicamente, ocorreu também uma clivagem estética. Ou seja, aquilo que é considerado belo esteve sempre vinculado àqueles que possuem poder, prestígio e riqueza. A beleza é uma forma de distinção”, iniciou. 

Se hoje as comparações são com mulheres altas, magras e loiras, no passado era ainda mais evidente a busca pelo modelo europeu. Algo salientado pelo sociólogo como “sem o menor sentido”, já que essa não é a raça que predomina entre as que compõem a diversidade do Brasil.

“Os cuidados com o corpo no mundo grego antigo e na sociedade romana, com ginásticas, cuidados com o cabelo e a pele. No Egito, sabemos que havia até intervenções plásticas. Seria equivocado pensar que o padrão de beleza é restrito ao mundo moderno. O senso estético é profundo no ser humano. Existir padrões de beleza talvez não seja o problema, a questão se torna problemática quando o modelo de beleza a ser alcançado é demasiado estreito, ou completamente estranho ao grupo, sendo importado de outras culturas, tornando-se assim muito excludente. Somos um país de mestiços e negros. Temos um gradiente de pele marrom, mais ou menos escura, e claro, a pele preta e os cabelos cacheados. Logo, importar um modelo europeu de beleza não faz o menor sentido. Não temos, como povo, a altura, a pele, os cabelos, os olhos dos europeus”, disse.

Ele ponderou a dualidade que há entre perpetuar padrões e ao mesmo tempo questioná-los. Um dos exemplos foi dado com o que acontecia na Inglaterra no passado, onde eram frequentes os casos de mulheres fraturando costelas e tendo dificuldades em respirar por conta do uso de espartilhos.

“Continuamos a vivenciar sacrifícios e esforços sem conta para se obter o padrão de beleza dominante, mas por outro lado somos uma sociedade na qual esse padrão é criticado, denunciado e pressionado como em nenhuma outra sociedade. Na Inglaterra e noutros países onde o uso dos espartilhos faziam um mal terrível para as mulheres, tais padrões sequer eram questionados. Hoje testemunhamos uma ambiguidade, porque tanto existem muitas pessoas que sofrem, física e psicologicamente, a imposição de um padrão, como existe uma crítica forte exigindo o alargamento do padrão, ou mesmo o reconhecimento da pluralidade de padrões. E isso é muito bom, saudável e resultará em algo mais razoável que os moldes estéticos têm sido nos últimos séculos”, projetou por fim.

Mais academias que bibliotecas
A leitura do caso feita pelo sociólogo, advogado e professor Isaac Luna é parecida, colocando a questão como histórica

“O fascínio pelo belo faz parte da humanidade. Sempre houve uma tentativa de retratar o belo, sobretudo o feminino”, disse de início.

Isaac Luna é sociólogo, advogado e professor universitário | Foto: Arquivo pessoal

Usando quatro mulheres famosas de exemplo, Luna incluiu o interesse de outras indústrias na existência de padrões a serem cumpridos, como a cosmética.

“A partir do século 20, essa estética do belo passou a ser vinculada à estética e também à ideia de beleza. Foram criados alguns padrões de estrutura corporal de magreza, pele clara e cabelos longos. Xuxa, Angélica, Eliana e Carolina Dieckmann são consideradas belas e isso acaba gerando uma pressão para que todas as mulheres se pareçam com elas. Se não for na estética, que usem o mesmo perfume ou a mesma roupa”, frisou.

Em tom crítico, para finalizar, ele fez um paralelo entre performances internas e externas.

“O Brasil tem mais academias que bibliotecas. Existe uma sobreposição da ideia estética que da ética”, disparou.

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