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Educação de crianças com deficiência enfrenta contrastes e dificuldades na pandemia

Suspensão das aulas, perdas financeiras e falta de atendimento remoto personalizado têm levado pais e mães a retirarem os filhos da escola. Especialistas orientam como estimular alunos com déficit de atenção

Érica Lima, 40, cuida do filho Benício, de 4 anosÉrica Lima, 40, cuida do filho Benício, de 4 anos - Foto: Camila Pifano/Arquivo Pessoal

As desigualdades sociais que sempre existiram podem ser vistas em vários aspectos nesta época de pandemia. E poucos setores trouxeram isso à tona melhor do que a educação. Desde que começou a se popularizar nos anos 90, a internet criada em 1969 gera novos hábitos e modifica práticas, inclusive de ensino, sempre com a promessa de ampliar o acesso à informação. Mas a web não chega a todos da mesma forma nem com a mesma qualidade, e a Covid-19 pegou de surpresa muitas escolas que não tinham estrutura nem preparo para oferecer aulas remotas. Se o desafio é grande para toda a comunidade escolar, ele é ainda maior para os alunos com deficiências, dificuldades e transtornos de aprendizagem.

Os adultos que precisaram, de uma semana para outra, se adaptar à rotina de cursos ou especializações on-line entendem bem do que estamos falando. Passar horas, às vezes um dia inteiro, em frente a uma tela de computador não é uma experiência agradável. Irrita os olhos, dói a coluna, cansa os ouvidos, dá sono. Se já é difícil para quem está na maturidade e, em princípio, “não tem” limitações físicas ou cognitivas, imagine para uma criança com dificuldade de concentração. E esse é apenas um dos sintomas que ela pode apresentar. Sem os estímulos corretos, ninguém, independentemente de idade ou deficiência, consegue avançar no desenvolvimento pedagógico virtual. Isso quando há encontro por videoconferência.

Com o primeiro semestre perto do fim e mais de 90 dias de quarentena, 2020 já é visto por muitos pais como um ano perdido. A sensação se repete tanto na rede pública quanto nas privadas, e até entre famílias de estudantes sem deficiência diagnosticada. Dados do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado de Pernambuco (Sinepe-PE) mostram que, desde março, 20% das matrículas em creches e pré-escolas particulares no Recife foram canceladas. Embora o levantamento não traga recortes específicos sobre crianças com deficiência, a interrupção das aulas, as dificuldades financeiras e a ausência de um acompanhamento remoto têm levado muitas mães a desistirem de manter o filho na unidade de ensino.

Foi o caso de Érica Lima, de 40 anos. O filho dela, Benício, 4, tem autismo e, até o mês passado, estava matriculado em uma escola particular perto de casa, no bairro do Ibura, Zona Sul do Recife. Sem conseguir estimular o menino a realizar as atividades passadas pela professora, a mãe decidiu tirá-lo do colégio. “Desde quando começou o isolamento, como a escola fica a duas ruas de casa, eu ia buscar lá a tarefinha dele. Mas Benício só aprende visualizando. Quando a atividade era de correr, montar bloquinhos, ele participava. Já quando é para escrever, é difícil. Ele não gosta de pegar em lápis, desenhar, pintar”, conta.

Com grau moderado dentro do espectro autista, Benício tem transtornos opositivo desafiador (TOD) e de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), além de dificuldades na comunicação oral. Está há três meses sem interagir com os colegas de turma e sem participar das aulas e das terapias regulares. Érica, que pensa em transferi-lo para uma escola pública, se preocupa com a sociabilidade do filho. “Claro que tem a questão do aprendizado, mas a minha preocupação sempre foi em socializar mesmo. E ele regrediu. Está mais agressivo, fazendo mais movimentos repetitivos”, observa.

Enviar tarefa para casa não é suficiente. Para a pedagoga Brunna Rafaella Gomes, da Associação de Pais para Tratamento e Bem-Estar das Crianças com Autismo (Afeto), é fundamental que haja planejamento do que o estudante precisa aprender em casa. Também é necessário um diálogo entre escola, terapeutas e os pais que considere as particularidades desse aluno. “Com o planejamento, a gente consegue manter, pelo menos, a aprendizagem. Se não tiver um plano da escola nem dos serviços que os pais buscam para a criança, pode acontecer uma regressão. Se ficar muito tempo ociosa, ela entra em comportamentos que não são de aprendizagem. Por isso, é muito interessante se a escola atrelar ao seu serviço o acompanhamento com os pais e outros terapeutas”, defende.

Juliana Penha 1Juliana Penha, 30, diz que material didático fornecido pela escola foi insuficiente (Foto: Arquivo Pessoal)

Acompanhamento
Motivar a criança a prosseguir os estudos dentro de casa tornou-se uma atribuição a mais dos pais no dia a dia. E, para boa parte dos alunos com deficiência, o acompanhamento deve ser integral. A presidente e fundadora da Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), Polyanna Dias, diz que, na pandemia, os responsáveis por esses estudantes acabam sendo sobrecarregados.

“As crianças estão fora de suas rotinas, enclausuradas, e poucas recebem material adaptado. Então a mãe, que já não tem o preparo de um professor, está fazendo o papel de fisioterapeuta, psicóloga, mãe, cuidadora e, agora, de professora”, comenta. Uma realidade que se revela ainda mais dramática quando se une às desigualdades socioeconômicas. “Na Amar, 80% das mães são mulheres negras de baixa renda. A maioria não tem computador em casa. Tenta pelo celular, o programa não pega, a internet é ruim, o barulho da vizinhança é alto”, afirma Dias.

A falta de acompanhamento personalizado é uma das queixas de Juliana Penha, 30. O filho dela, Angel Gabriel, 8, tem hidrocefalia e está no 3º ano do Ensino Fundamental numa escola municipal no bairro de Candeias, Jaboatão. Lá, não foi implantado o ensino remoto, e a unidade se comprometeu a enviar um material didático com atividades para serem feitas em casa. A mãe afirma que, desde a suspensão das aulas presenciais, recebeu apenas um kit em maio. “Ele está há 90 dias sem sair de casa e tudo isso provoca ansiedade e estresse, sem a gente ter orientação nenhuma”, desabafa. “No segundo mês, chegou um material com sete folhas de atividades, que em sete dias acabou. Foi um passatempo. A notícia que a gente tinha é que seriam entregues mais atividades, mas em julho não chegou”.

Por meio de nota, a Prefeitura de Jaboatão informou que, em maio, os 65 mil alunos da rede municipal receberam material didático, produzido de forma que cada estudante tenha uma atividade por dia. O texto afirma ainda que, em julho, serão entregues mais cadernos com kits de alimentos e que assim será feito enquanto perdurar o isolamento social.

Na rede estadual, 6.023 dos cerca de 580 mil alunos apresentam algum tipo de deficiência. Segundo a gerente de Políticas de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria Estadual de Educação e Esportes, Vera Braga, a pasta publicou diretrizes sobre práticas pedagógicas voltadas às necessidades desse público. As orientações estão disponíveis no site do órgão e, de acordo com ela, podem ser consultadas pelos municípios. “A gente tem um ícone voltado só para educação inclusiva. Você vai ter atividades para estudantes cegos, com Down, autismo. E no site tem orientações para as famílias e aulas com interpretação em Libras”, detalha.

Atenção e diálogo
Em crianças com autismo e transtornos de aprendizagem, como TDAH e dislexia, o desafio é manter o foco. A professora universitária Anna Karina Xavier acompanha o filho em todas as atividades remotas do colégio particular onde ele estuda. Diante da dificuldade em se concentrar, ela combinou com a escola que Matheus, 8, só ficaria uma hora por dia na aula virtual. “Mesmo assim, você tem que ficar colocando alguma coisa prazerosa para ele. Por exemplo, cantar, brincar, permitir que ele saia um pouquinho e volte. Não são 60 minutos ele ali, sentado. Eu tenho que ficar o tempo todo”, conta.

Anna Karina Xavier acompanha as aulas diárias do filho Matheus, 8Anna Karina Xavier acompanha as aulas do filho Matheus, 8 (Foto: Arquivo Pessoal)

Estabelecer uma rotina que dê previsibilidade e, ao mesmo tempo, prepare o filho para os imprevistos do dia a dia é a primeira orientação do neurocientista Victor Eustáquio, sócio fundador da Somar, clínica especializada em atendimento de crianças com autismo. “Em casa, a criança brinca com o computador e o celular, que são instrumentos que ela não associa a atividades pedagógicas. Você tem que criar uma rotina que não existia. E quem administra isso são os pais. Então a gente tem que treinar esses pais, que vão passar para a criança”, ressalta. Além disso, a aula deve ser atrativa. “Do pouco para o muito, vou inserindo coisas positivas que façam ela permanecer”, avalia o especialista.

Nesse cenário, a escola precisa estar sempre por dentro das potencialidades e características de cada aluno. A diretora pedagógica Rozario Azevedo, do Colégio Lubienska, na Zona Oeste do Recife, diz que tem buscado, até mais do que antes da pandemia, personalizar as soluções para os alunos. Hoje, a unidade atende 31 crianças e adolescentes com deficiências diferentes que participam de aulas remotas. “Na escola, além do professor, a depender do caso, a gente tem auxiliar de sala, uma equipe que ajuda a gente nesse trajeto. Tem sido muito pesado para as famílias e para a gente, que precisa aprender uma nova forma de estimular”, comenta. Por isso, segundo ela, as atividades on-line devem ser mais objetivas para os que têm déficit de atenção. “Por exemplo, um texto. O professor pode trabalhar uma crônica longa para o resto da turma e para esse estudante oferece uma mais curta”, explica.

No meio disso tudo, há uma dúvida que se lança para o futuro próximo. Enquanto a Secretaria de Saúde elabora o protocolo para o retorno das atividades presenciais nas escolas, as unidades precisam se preparar para receber esses alunos com segurança. Os professores também terão que avaliar os estudantes para traçar um planejamento de ensino a partir do que foi aprendido durante a quarentena. “Vão sair documentos com orientações sobre biossegurança, desde hábitos de higiene e distanciamento social a recepção acolhedora. Toda a comunidade escolar, do gestor à merendeira, está em aprendizagem. E é preciso que esse estudante tenha autonomia para aprender as normas e mantenha a saúde em bom estado”, garante a gerente de Educação Inclusiva da Secretaria de Educação, Vera Braga.

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