Prevenção

Enchentes no Sul evidenciam importância da drenagem: por que ela ainda fica em segundo plano?

Essa infraestrtura não costuma entrar nos contratos de concessão de serviços a serem assumidos pela iniciativa privada

Rio Grande do Sul, após enchentes Rio Grande do Sul, após enchentes  - Foto: Gustavo Ghislenia/AFP

A enchente no Sul do país e a ocorrência cada vez mais frequente de eventos climáticos extremos abriu uma discussão importante sobre o avanço do saneamento no Brasil: a drenagem de águas pluviais em áreas urbanas é um elemento tão importante quanto fornecimento de água potável e coleta e tratamento de esgoto, mas ficou relegada ao segundo plano até agora.

Nem os mais novos contratos de concessão de saneamento preveem a inclusão da drenagem entre os serviços a serem assumidos pela iniciativa privada, deixando um fator decisivo para as cidades numa espécie de limbo institucional.

— A microdrenagem fica a cargo das prefeituras, mas muitas nem investem. Já a macrodrenagem, que consiste em conduzir águas das chuvas para rios, lagos ou para o mar, precisa ter a articulação entre várias cidades e o estado, o que também não acontece. Ficou uma espécie de vazio institucional em relação à drenagem — diz Percy Soares Neto, sócio da Ikigai Consultoria e ex-diretor da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).

Os especialistas lembram que o investimento na infraestrutura para drenar a água da chuva nas cidades (bocas de lobo, tubulações, galerias de grandes dimensões, diques de contenção, piscinões, estruturas hidráulicas) é elevado, mas esses equipamentos são utilizados sazonalmente — ou seja, apenas quando chove.

Parques lineares (ou corredores verdes) e os chamados jardins de chuva também fazem parte desse sistema de drenagem — e são estruturas que podem ser usadas mesmo em tempo de seca, beneficiando a população com redução de ilhas calor, oferta de áreas de lazer e melhoria da paisagem urbana.

‘Patinho feio’

Outro fator que transforma a drenagem numa espécie de “patinho feio” do saneamento, dizem os especialistas, é o fato de a infraestrutura de drenagem ficar enterrada — ou seja, não tem visibilidade.

Do ponto de vista político, é mais interessante aos governantes fazer obras que os moradores da cidade notem mais facilmente.

Roca Sales foi uma das cidades mais atingidas pela enchente que devastou o Rio Grande do Sul Roca Sales foi uma das cidades mais atingidas pela enchente que devastou o Rio Grande do Sul - Bruno Peres/Agência Brasil

Em Porto Alegre, logo após a enchente de maio, o prefeito Sebastião Melo informou que foram investidos mais de R$ 108,8 milhões em obras relacionadas à prevenção de enchentes e alívio de alagamentos em 2023.

Segundo ele, entre os serviços executados, foram feitas melhorias no sistema de proteção contra cheias e no manejo da água da chuva, manutenção do sistema de drenagem e a retirada de sedimentos de rios.

Mesmo assim, diante da dimensão das chuvas que fizeram o Guaíba transbordar, não foram suficientes para impedir a inundação da capital gaúcha e facilitar a drenagem quando o nível do rio baixou.

A água subiu 6 metros acima do limite e alcançou o centro histórico e mais dez bairros, afetando mais de 150 mil pessoas, e deixando praças, vias públicas, escolas, unidades de saúde e até o aeroporto submersos.

O sistema de diques da cidade não foi capaz de conter a água, e as estações de bombeamento falharam. Das 23 existentes, apenas oito estavam funcionando duas semanas após a catástrofe.

O Plano Municipal de Saneamento, de 2015, já apontava capacidade de vazão de água 70% abaixo do necessário, além do mau estado dos sistemas da cidade.

Os governos federal e estadual anunciaram, após a tragédia, investimentos de R$ 7,3 bilhões para obras em 38 cidades atingidas, entre elas Porto Alegre. Só para drenagem, a estimativa é de R$ 6,5 bilhões.

— Acaba se gastando mais com os danos causados pela falta de drenagem — observa Percy Soares.

São necessários R$ 250 bi

O professor da FGV e sócio da consultoria GO, Gesner Oliveira, estima que, para universalizar os serviços de drenagem no país, são necessários investimentos de R$ 250 bilhões, um valor impeditivo diante da situação fiscal delicada dos municípios e dos estados.

Por isso, ele defende que os serviços de drenagem sejam incluídos nos próximos leilões de concessão de saneamento.

— Atualmente, na média, o investimento anual em drenagem é de R$ 2 bilhões. Precisaria subir para R$ 18 bilhões para o país ter uma infraestrutura de drenagem adequada. Há cidades que não têm qualquer investimento — diz Oliveira.

Fernando Gallacci, sócio da área de infraestrutura do escritório Souza Okawa Advogados, observa que os serviços de drenagem fazem parte do saneamento básico e estão previstos no novo marco do saneamento, aprovado em 2020, que busca a universalização desses serviços no Brasil até 2033.

No entanto, ele pondera que, diferentemente de água e esgoto, não está claro nos projetos de investimento privado como cobrar uma tarifa pela drenagem.

— Existe dificuldade em organizar a cobrança das tarifas dentro das características de mensuração individualizada do consumo dos serviços, como acontece com água e esgoto. Isto é, que os preços cobrados sejam proporcionais à utilização de cada usuário — diz o advogado, que acredita que as Parcerias Público Privadas (PPPs) sejam uma alternativa, já que preveem contrapartidas financeiras do poder público.

Gallacci lembra que o novo marco do saneamento atribui às agências reguladoras a tarefa de estabelecer metas para as cidades expandirem sua rede de drenagem.

Nos municípios onde a coleta de esgoto e de águas pluviais é interligada, a nova regulação prevê a separação, com a obrigação de tratar os esgotos coletados, inclusive nos períodos de estiagem, durante a transição.

100% de tratamento em Jundiaí

Jundiaí, no interior de São Paulo, universalizou água e esgoto em 2017. Ostenta hoje índice de 99,07% da população atendida por rede de água, 98,23% de coleta de esgoto e 100% de tratamento.

Com um planejamento de longo prazo — que atravessou diferentes governos municipais e incluiu a iniciativa privada já nos anos 1990, quando isso ainda era raro no país —, a cidade investiu em estruturas distintas para águas pluviais e esgoto.

O esgoto é responsabilidade de um consórcio privado, e a DAE, companhia de economia mista controlada pela prefeitura com participação privada, trata e distribui a água.

Métodos inovadores

A prefeitura cuida das águas pluviais, mas o planejamento desse sistema teve tanta atenção e investimento quanto água e esgoto. Só neste ano, a cidade de 440 mil habitantes aplica R$ 10 milhões em drenagem.

A partir da década de 1980, com 58 bairros pavimentados, houve salto nos sistemas de macrodrenagem de Jundiaí. Os alagamentos e transbordamentos em vários pontos foram resolvidos com a construção e ampliação da calha do Rio Jundiaí.

Mas agora, com a maior frequência de chuvas intensas, a cidade voltou a registrar pontos de atenção.

Entre as novas soluções em curso estão estudos para construção de piscinões ao longo do curso d’água, a partir do Parque Linear, e a criação de um “polder” na região do Jardim Tulipas.

Trata-se de um conjunto de terrenos baixos, planos e alagáveis que são protegidos continuamente de alagamentos por meio de diques.

Outra medida já adotada em outras áreas públicas, como hortas e escolas, é a construção de jardins de chuva e pequenos piscinões, que têm as mesmas funções do “polder”.

A lógica é ampliar a infiltração da água da chuva na terra, direcionando para o lençol freático, retardando o escoamento para o rio. É uma demonstração de que pensar a drenagem não consiste só em instalar tubulações no subsolo.

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