Entenda a influência do Hezbollah e como ela pode ser afetada com escalada da guerra contra Israel
Com um Exército maior que o do Estado libanês e um partido político capaz de paralisar a escolha por um presidente, movimento xiita está entranhado na estrutura de bem-estar social do país
Com um Exército maior que o do Estado libanês e um partido político capaz de paralisar a escolha por um presidente, o Hezbollah se tornou o principal alvo das forças israelenses desde as explosões de pagers e walkie-talkies usados pelo grupo na semana passada.
Para além do poderio militar, o movimento xiita libanês está entranhado no sistema político e na estrutura de bem-estar social do país há décadas. Mas em meio às demonstrações retóricas de força, a eventual escalada para uma guerra total contra Israel intensificaria a profunda crise econômica e política na qual o Líbano está afundado — para muitos, por uma parcela de culpa do próprio Hezbollah.
De acordo com uma pesquisa do Barômetro Árabe de julho, 55% dos libaneses afirmaram não confiar nenhum pouco no Hezbollah, enquanto 30% disseram confirmar muito ou parcialmente. O apoio é particularmente forte entre os muçulmanos xiitas (85%), contra apenas 9% entre sunitas e drusos e 6% entre cristãos maronitas — os quatro maiores grupos identitários da população.
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Analistas ouvidos pelo O Globo avaliam que a escalada do conflito com Israel — que hoje parece mais uma questão de "quando" do que "se" — seria um golpe à popularidade flutuante do movimento internamente. Hoje, embora 78% dos libaneses avaliem a ofensiva israelense à Gaza como um "ato de terrorismo", apenas um terço apoia o envolvimento do Hezbollah em conflitos regionais, apontou o Barômetro Árabe. Desde 8 de outubro, o grupo troca ataques transfronteiriços com Israel em apoio à causa palestina, condicionando o fim das tensões com um cessar-fogo no território palestino.
— Há muitos libaneses que acham que essa briga do Hezbollah com Israel acaba atraindo problemas para dentro do Líbano — afirma Márcio Scarlecio, professor de Relações Internacionais na PUC-Rio e especialista no conflito árabe-israelense. — Há libaneses que acreditam que o Hezbollah deveria ser desarmado, que todas as milícias deveriam ser desarmadas para tentar estabelecer um monopólio do uso da força por parte do Estado, mas isso é um problema que existe desde antes da criação do Hezbollah.
Origem da ala política
Fundado em 1982, o Hezbollah surgiu durante a Guerra Civil Libanesa como uma milícia contrária à ocupação israelense do sul do Líbano, num momento em que autoridades do Irã, que haviam recém-conquistado o controle do país durante a Revolução Islâmica de 1979, buscavam alianças com grupos xiitas no Oriente Médio.
Com o fim da guerra civil nos anos 1990, todos os grupos armados libaneses concordaram em entregar suas armas, exceto o Hezbollah, que alegou que continuaria defendendo o sul do Líbano, ainda sob controle de Israel. O movimento, no entanto, seguiu a onda dos demais de formar partidos políticos competitivos. Com o financiamento do Irã, o Hezbollah foi ampliando seu poderio militar ao mesmo tempo em que fazia alianças importantes no Parlamento — não só com legendas xiitas, mas cristãs maronitas também. A saída das tropas israelenses do sul do Líbano, em 2000, impulsionou ainda mais a popularidade da milícia, explica Rodrigo Ayupe, antropólogo e pesquisador do núcleo de estudos do Oriente Médio da UFF.
— Hoje o Hezbollah é o partido mais poderoso do Líbano: tem 30 das 128 cadeiras no Parlamento, que são divididas em metade para os cristãos e metade para os muçulmanos, incluindo xiitas, sunitas, drusos e outras minorias — detalha Ayupe, explicando como funciona o sistema político do país, conhecido como confessional: — Nesse modelo, os assentos são distribuídos de acordo com a demografia das comunidades libanesas.
Além da divisão no Parlamento, o sistema político sectário do Líbano estabelece que o presidente —eleito pelos parlamentares — seja sempre cristão; o primeiro-ministro, sunita; e o presidente da Câmara, xiita. Desde 2022, no entanto, o país está sem presidente, uma situação que já aconteceu em outros momentos da história recente, segundo Ayupe. Na prática, há duas coligações majoritárias: a 8 de Março, dominada pelo Hezbollah, e a 14 de Março, controlada pelo Movimento Futuro, de maioria sunita, cujas rivalidades ultrapassam as fronteiras do Líbano e espelham a velha disputa entre Irã (xiita) e Arábia Saudita (sunita).
— Quando há eleições para presidente no Parlamento, ninguém quer ceder. Se no primeiro turno alguém da coligação 14 de Março está ganhando, os congressistas do Hezbollah boicotam o segundo e não comparecem. Em 2016, foram 66 votações frustradas assim — detalha Ayupe. — Isso é uma prática da cultura política do Líbano desde o fim da guerra civil.
Apesar de alguns analistas atribuírem ao Hezbollah a responsabilidade pela acefalia do Estado libanês desde 2022, Scarlecio afirma o cenário é fruto do modelo político do país.
— O Hezbollah está fazendo papel dele dentro dessa divisão confessional — pontua. — Teoricamente, há 18 comunidades diferentes que são reconhecidas no Líbano e que deveriam ter sua parcela de poder no país, mas nada verdade quem tem poder mesmo são os muçulmanos sunitas e os xiitas. Há um debate no Líbano há alguns anos de acabar com o sistema confessional e adotar o Estado laico. O sistema confessional é muito criticado, e inclusive líderes do Hezbollah são muito acusados de incompetência ou de corrupção. Certamente, o conflito que está acontecendo agora não vai ajudar nem um pouco a resolver a questão.
Crise econômica somada à guerra
Se no passado o Líbano foi um dos países não produtores de petróleo mais desenvolvidos do mundo árabe, hoje o país está mergulhado na sua mais grave crise econômica desde que sobreviveu a um quase colapso em 2019, agravada com o acidente, no ano seguinte, no armazém de um porto em Beirute, que deixou mais de 200 mortos, 7 mil feridos, e foi considerada com a maior explosão não nuclear da História.
Por um lado, parte da população responsabiliza o Hezbollah pelo caos econômico. Por outro, a rede de estruturas sociais construídas pelo grupo para atender a população tem colaborado para quer o grupo mantenha apoio em redutos como o sul do Líbano, os subúrbios de Beirute e no Vale do Bekaa, onde tem uma forte presença.
— O Hezbollah tem instituições de bem-estar social que oferecem serviços como hospitais com consultas mais baratas, escolas com mensalidades baixas, asilos idosos mais pobres, e são servicos oferecidos não só pra xiitas, mas incluem outras comunidades também — detalha Ayupe. — Mas há episódios que impactaram a sua popularidade, como a crise econômica no Líbano, que muita gente culpa o Hezbollah por também fazer parte desse sistema sectário; e explosão do porto de beirute, que existem teorias de que o Hezbollah armazenava nitrato de amônia no hangar. Uma guerra total agora intensifica ainda mais a crise. Eles já foram responsabilizados pelas perdas de 2006.