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AFEGANISTÃO

Entenda como o Talibã ameaça o patrimônio cultural do Afeganistão

O receio é de que facção volte a depredar a herança cultural do país

Homens carregam o Guru Granth Sahib, que foi trazido do Afeganistão após a tomada pelo TalibãHomens carregam o Guru Granth Sahib, que foi trazido do Afeganistão após a tomada pelo Talibã - Foto: Money SHARMA / AFP

A retomada de Cabul pelo Talibã no último dia 15 ressuscitou os pesadelos dos afegãos, que ainda se lembram de seus tormentos sob o domínio da facção radical de 1996 a 2001. Um desses horrores, entre tantos, foi a destruição de seu patrimônio cultural -um risco que volta a se impor.

A demolição dos Budas de Bamiã, em março de 2001, meses antes da invasão americana que expulsou o Talibã, é um dos símbolos da barbárie travada por essa facção contra a história do Afeganistão. Os budas haviam sido esculpidos por volta do século seis na montanha, em um trecho da Rota da Seda. O Talibã, cuja leitura radical do islã condena a idolatria, explodiu as estátuas.

O receio é de que, uma vez de volta ao poder, a facção despedace ainda mais a herança cultural do Afeganistão. O Talibã, no entanto, tem tentado convencer o mundo de que mudou nessas últimas duas décadas, que já não adota as mesmas visões fundamentalistas.

Em fevereiro, o grupo emitiu um comunicado prometendo proteger, monitorar e preservar as relíquias do país. Depois de tomar Cabul, os militantes também prometeram ao diretor do Museu Nacional do Afeganistão -uma referência mundial de acervo da Antiguidade- que não vão pilhar seus artefatos. Como o anúncio de que os fundamentalistas vão respeitar o direito das mulheres, que foram apedrejadas ali até a morte nos anos 1990, essa promessa não inspira muita confiança dentro e fora do país.

Ainda que o Talibã cumpra o prometido em Cabul, a situação pode ser diferente nas zonas rurais, longe das câmeras da imprensa internacional. Há também divergências entre a liderança do grupo e seus militantes, alguns dos quais não estão necessariamente interessados em projetar uma imagem de moderação para manter o acesso a canais diplomáticos e financeiros.

O Icom, o conselho internacional de museus, na sigla em inglês, afirma que está acompanhando de perto a situação no país. Nas redes sociais, o órgão circulou uma longa lista de objetos que correm risco de pilhagem e destruição sob um regime radical do Talibã. Entre eles, vasos de cerâmica, estatuetas de calcita, painéis de marfim, jarros de cobre, moedas de bronze e relicários de ouro. São registros históricos, tangíveis, dos séculos passados nessa riquíssima região da Ásia central.

A pilhagem não é um risco que existe apenas sob o Talibã. Essa é uma realidade no Afeganistão há décadas, diz Bastien Varoutsikos, arqueólogo especializado no país. Artefatos são roubados e contrabandeados para suprir as demandas da Europa, dos Estados Unidos e do Golfo Pérsico. Nos últimos 30 anos, o museu já perdeu grande parte de sua coleção arqueológica e etnográfica. As atividades do Talibã, além do caos e da violência que a facção semeia, podem agravar o cenário.

A instabilidade política ameaça também o patrimônio intangível -algo com que Varoutsikos trabalha há tempos no Afeganistão. São práticas culturais como a tradição de recitar poemas ao som de um instrumento de corda feito de madeira de amoreira. Histórias folclóricas, canções populares e celebrações religiosas são também patrimônios valiosos, apesar de muitas vezes serem preteridos, com mais atenção sendo dada ao patrimônio material.

"Muitas tradições culturais foram interrompidas com a fuga dos afegãos", diz Varoutsikos. Práticas como a música e a dança dependem de redes sociais que já não existem, com todo o êxodo causado pelo Talibã.
Foi o que aconteceu entre 1996 e 2001, quando o Talibã dominou o país. Essa facção, avessa à música fora de contextos religiosos específicos, proibiu que afegãos tocassem seus instrumentos musicais. Muitos dos artesãos se refugiaram, portanto, em países como o Paquistão e o Irã, conta Varoutsikos.


Alguns continuaram seu trabalho ali. Mas algo se perdeu -por exemplo, com o uso de diferentes madeiras, que soam diferente, e com a impossibilidade de transmitir conhecimento oral. A cultura precisa ser praticada para continuar a existir, diz Varoutsikos. Do contrário, some.

O trabalho de conservação, feito por gente como ele, por vezes esbarra na ressalva de quem insiste em que toda a atenção internacional e todo o capital deveriam ser investidos na assistência humanitária –coisas como campos de refugiados e comida. O arqueólogo discorda desse tipo de visão que divide o mundo entre duas coisas.

Ele aponta para a conexão entre a herança cultural e as pessoas que a praticam. São pessoas, também, que erguem os monumentos e os visitam. Varoutsikos diz, ademais, que as tradições de um povo estão ligadas ao seu bem-estar e à preservação de sua história e de sua identidade. "A divisão entre pessoas e pedras é irrelevante."

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