Entenda como posts em redes sociais abriram denúncia contra soldado israelense que deixou o Brasil
Equipe de investigadores de ONG baseada na Bélgica reuniu publicações em redes sociais de militar para formular denúncia em que o acusa da prática de supostos crimes de guerra
A publicação deveria ter desaparecido em apenas 24 horas. Yuval Vagdani, militar israelense que saiu do Brasil no domingo após virar alvo de um pedido de investigação da Justiça Federal do Distrito Federal e Territórios, ainda estava a serviço na Faixa de Gaza quando postou imagens de prédios em ruínas no Corredor de Netzarim em seu perfil privado no Instagram, com uma frase de efeito: "Que possamos continuar destruindo e esmagando este lugar imundo sem pausa, até os seus alicerces." Cerca de dois meses depois, o story ressurgiu como o fio condutor de uma ação judicial em solo brasileiro, pedindo sua prisão por supostos crimes de guerra no território palestino.
A autorização da Justiça para que a Polícia Federal investigasse o militar israelense, então de férias no Brasil, foi o desdobramento mais recente de uma série de casos envolvendo denúncias contra veteranos da guerra em Gaza, pautadas em evidências colhidas a partir de publicações feitas pelos próprios militares ao longo de seu serviço em território palestino. O tema já motivou preocupações de autoridades do Exército no passado.
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A ação movida no Brasil partiu de uma investigação feita pela Fundação Hind Rajab (HRF, na sigla em inglês), uma ONG pró-Palestina com sede em Bruxelas que se dedica a documentar e denunciar crimes de guerra no conflito em Gaza. O grupo já apresentou acusações similares em países como Argentina, Chipre, França e Sri Lanka, além de provocar o Tribunal Penal Internacional (TPI). A organização é acusada pelo governo israelense e organizações pró- Israel de ter sido fundada para reforçar narrativas antissionistas e de justificar ações de grupos como Hamas e Hezbollah.
A advogada Maira Pinheiro, que assina a notícia-crime contra Vagdani, disse em entrevista ao GLOBO que foi contatada pela HRF, após a equipe de investigação da ONG identificar que o militar estava no Brasil. Pinheiro, que atualmente figura como advogada de uma família que teve a casa destruída pela Brigada Givati, em que o soldado servia, disse que o arcabouço probatório foi construído a partir das investigações da organização.
— Existe uma equipe de investigação que monitora as publicações que esses soldados fazem, em que eles frequentemente documentam condutas violentas, de conotação de incitação ao genocídio, e muitas vezes documentando a prática de crimes de guerra — afirmou a advogada.
Além do vídeo com as residências destruídas no Corredor de Netzarim, a acusação também apontou outros registros, feitos pelo militar e por seus companheiros de regimento, em que eles aparecem em locais que posteriormente foram explodidos — incluindo a destruição de um quarteirão inteiro de casas, segundo Pinheiro. Por meio de cruzamento de imagens e dados de geolocalização, a acusação diz comprovar para além de qualquer dúvida razoável que o soldado esteve implicado na destruição das casas de civis.
— Um terceiro soldado postou fotos da instalação dos explosivos, e nessa sequência de fotos aparece o Yuval e também vasos com os explosivos e com a bobina de fio que eles usam para ativá-lo. Muito claramente, eles não estavam numa situação de conflagração, porque se eles estivessem, não teriam como instalar explosivos em pelo menos cinco prédios residenciais diferentes, muito menos posar para fotos enquanto estão fazendo isso — argumentou.
Embora as autoridades brasileiras não tenham atendido ao pedido principal da ação movida contra o soldado, a advogada afirmou que os métodos de obtenção de prova em fontes abertas e os softwares utilizados na cadeia de custódia dessas informações on-line são amplamente aceitos nos tribunais brasileiros, acrescentando que em seus anos de advocacia já presenciou clientes serem absolvidos ou condenados "com provas menos robustas" que as coletadas pela HRF.
Em meio ao incidente em solo brasileiro, as autoridades israelenses voltaram a mostrar preocupação com os "conteúdos" produzidos pelos militares em áreas de conflito. Desde os primeiros meses, surgiram relatos de militares israelenses usando o cenário de guerra para produzir memes a partir da destruição do território palestino. Em dezembro de 2023, o GLOBO noticiou que vídeos produzidos por militares israelenses na rede social TikTok enalteciam a destruição de Gaza.
Outras imagens capturadas em territórios palestinos também foram utilizadas para acusar Israel de cometer violações durante o conflito. Em um dos casos flagrados em vídeo que repercutiram ao redor do mundo e resultou em um pedido de explicações de Washington, militares foram filmados empurrando corpos de telhados na Cisjordânia. Neste caso, o autor das imagens não era um militar.
No domingo, após anunciar que a Embaixada de Israel em Brasília acompanhou a saída do militar do país, o Ministério das Relações Exteriores israelense alertou os soldados sobre as postagens nas redes sociais sobre o seu "serviço militar", segundo a agência de notícias americana Associated Press.
Enquanto isso, no Brasil, a advogada que atua no caso relatou ter sido vítima de uma onda de ataques on-line. As ameaças, disse Pinheiro, incluíram promessas de violência contra ela e sua filha, e pedidos para que o Mossad (serviço secreto de Israel) "agisse". Ela disse ter registrado todas as ofensas e feito denúncias à Polícia Civil de São Paulo, à Polícia Federal, ao Ministério Público de São Paulo e ao Ministério Público Federal, além de denunciar coação no curso do processo.