Entenda por que o burnout ameaça definir a vida de quase todos os millennials
Burnout, em bom português, é uma exaustão extrema ligada ao trabalho
A primeira coisa que Anne faz ao acordar é desligar o aplicativo que controla seu sono. Ainda na cama, bate o olho nos alertas de notícias com as mais variadas desgraças; no banho, tem uma ideia para um tuíte e escreve enrolada na toalha.
Lê mensagens de trabalho enquanto toma café. Tenta ficar em dia com os emails, mas é interrompida por um alerta de nova mensagem no Facebook. Aproveita o tempo em que faz bicicleta na academia para ler artigos que recomendaram a ela no Twitter.
O dia segue adiante e adiante, e a hora em que ela desliga simplesmente não chega –Anne, aliás, é a jornalista e pesquisadora Anne Helen Petersen, que relata esse "dia bem comum" de sua vida digital em "Não Aguento Mais Não Aguentar Mais", que defende a tese de que a característica definidora da sua geração, os millennials, é o burnout.
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Burnout, em bom português, é uma exaustão extrema ligada ao trabalho. Os millennials, em bom português, são a geração que nasceu mais ou menos entre 1980 e 1995 e entrou no mercado de trabalho enquanto a internet passava de ferramenta útil a companheira de todos os momentos da nossa vida.
Curioso é que o estereótipo sedimentado sobre os millennials é o de uma juventude mimada, frágil e meio encostada. Petersen, que é doutora em estudos de mídia pela Universidade do Texas, nos Estados Unidos, reconhece de pronto a existência desse rótulo e procura entender a decepção fundamental que o originou.
"Nossos pais nos disseram que somos especiais, que merecemos tudo e que, se trabalhássemos bastante, as coisas iriam ficar bem", diz a escritora de 40 anos. "E, quando entramos no mercado de trabalho, no final dos anos 2000, perguntamos 'bom, se eu sou especial, onde é que está meu bom emprego?'."
Segundo a análise da autora, as últimas décadas viram a deterioração de uma série de garantias e proteções que pareciam firmes e sob as quais a geração boomer cresceu e criou seus filhos –como a certeza da aposentadoria e as relações trabalhistas tradicionais. Surgiu no lugar uma nova "economia dos bicos".
Isso fez com que a carreira dos millennials, sob regras mais incertas e promessas mais nebulosas, fosse engolindo mais e mais tempo do dia de cada profissional, argumenta a obra, e turvando os períodos de trabalho e lazer –o que se intensificou ainda mais na pandemia com o home office.
"O burnout é a resposta do sujeito à ideologia do empreendedorismo, que faz com as pessoas se responsabilizem totalmente pela gestão do seu trabalho", afirma Pedro Ambra, doutor em psicologia social e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. "Além de trabalhar, eu tenho que me divulgar, me gerir e não tenho garantia de descanso em fim de semana e férias."
Dessa forma, as horas que seriam dedicadas ao repouso são substituídas pela ansiedade de fazer alguma coisa produtiva, seja ver a série que todos estão postando no Instagram ou atualizar o LinkedIn para conseguir o próximo freelance.
O psicanalista lembra que usar redes sociais, hoje, também é trabalho –é a lapidação constante do avatar que você apresenta ao público, como argumenta o livro de Petersen.
"Ninguém fica relaxado quando passa uma hora lendo feed de notícias em rede social", diz Ambra, uma afirmação que soa particularmente apropriada para quem acompanha o noticiário político brasileiro. "E o ciclo se fecha com a questão da hipermedicalização. A droga me recoloca na linha de produção. O organismo que está pedindo para parar é silenciado, e eu posso voltar a produzir."
Petersen começou a articular "Não Aguento Mais Não Aguentar Mais" a partir de seu próprio burnout –que ela relutou, como é comum, em reconhecer como burnout.
"Eu achava que estava trabalhando como sempre trabalhei", diz ela. "Não entendia por que começava a chorar quando minha editora ligava, reagi mal quando ela sugeriu que eu estava esgotada. Só identifiquei o problema quando percebi que não conseguia encontrar energia nem vontade para fazer minhas tarefas do dia a dia."
Há dois anos, a Organização Mundial da Saúde registrou a síndrome de burnout como um "fenômeno ligado ao trabalho". Petersen oferece uma definição sucinta. "Exaustão significa ir até um ponto em que não é possível ir além; burnout significa chegar a esse ponto e se forçar a continuar, por dias, semanas ou anos."
A autora aponta que seu livro não busca trazer soluções individuais sobre como lidar com o soterramento de demandas –a editora Sextante tem em "Sem Esforço" e na reedição de "Essencialismo", de Greg McKeown, opções que atacam questões parecidas por esse lado mais utilitário.
Os esforços de Petersen se concentram em apontar aos leitores problemas estruturais. Uma ideia que ela apresenta, por exemplo, é que talvez ninguém deva necessariamente trabalhar com aquilo que ama, escapando assim de uma lógica que pode estimular o burnout.
"Um traço primário dos millennials é achar que o sentido da sua vida será derivado daquilo que você é pago para fazer. Mas você pode satisfazer as suas paixões de muitas formas que não têm a ver com trabalho."
Isso não significa um veto mirabolante a trabalhar com assuntos atraentes, mas manter em mente que não é saudável "trocar estabilidade por felicidade".
"O que tenho visto nos últimos anos são pessoas rejeitando a ideia de ter uma carreira", diz a autora. "Não querem achar a coisa que vão fazer pelos próximos 40 anos. Querem achar um trabalho, e então descobrir o que mais é importante."
NÃO AGUENTO MAIS NÃO AGUENTAR MAIS
Preço: R$ 49,90 (336 págs)
Autor: Anne Helen Petersen
Editora: HarperCollins
Tradução: Giu Alonso