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Morales

Escondido na selva da Bolívia, Evo Morales planeja retorno à Presidência

Ex-presidente está refugiado em um bunker, protegido por milhares de seguidores armados

O ex-presidente boliviano (2006-2019) Evo MoralesO ex-presidente boliviano (2006-2019) Evo Morales - Foto: Aizar Raldes / AFP

Em um recanto remoto da selva boliviana, há uma emissora de rádio cujos ouvintes são principalmente agricultores de coca, planta frequentemente usada para fabricar cocaína, mas também como estimulante leve e remédio para o mal de altitude. Ali, vive também um ex-presidente que foge da lei, refugiado em um bunker e protegido por milhares de seguidores armados com paus, prontos para repelir qualquer tentativa de prendê-lo por acusações de tráfico de pessoas e estupro.

Ficaram no passado os dias em que Evo Morales viajava pelo mundo como um astro da esquerda, aclamado por liderar a recuperação econômica de um dos países mais pobres da América Latina. Agora, passa seus dias confinado em um vilarejo isolado, de onde planeja seu retorno à política para disputar a Presidência em agosto. No entanto, os tribunais bloquearam sua candidatura, e Morales corre o risco de ser preso caso deixe o local.

Chances de vencer

Caso consiga se candidatar, independentemente das acusações que enfrenta, o cenário político boliviano está tão instável que Morales teria chances de vencer. A recente alta da inflação alimenta a nostalgia, especialmente entre os mais pobres, pelos 14 anos em que ele governou o país, ganhando seguidores ao nacionalizar a indústria do gás e defender os direitos indígenas. Ele se aproximou de Fidel Castro, de Cuba, Hugo Chávez, da Venezuela, e até do cineasta Sean Penn.

Em seu governo, a economia da Bolívia cresceu a uma taxa impressionante de 5% ao ano, quase o dobro da média latino-americana, segundo o Banco Mundial. Em contraste, nos últimos anos, a inflação atingiu seu nível mais alto em três décadas, há escassez de combustível e a moeda local sofreu forte desvalorização.

Poucos, além de alguns seguidores, viram Morales pessoalmente desde que um juiz ordenou sua prisão, em janeiro, sob acusação de ter mantido um relacionamento com uma jovem de 16 anos que teria dado à luz um filho seu em 2016. O ex-presidente nega as acusações, que seus apoiadores alegam ter motivação política. Eles instalaram barreiras e bloqueios de estradas ao redor do vilarejo de Lauca Eñe, no departamento de Cochabamba, para protegê-lo da polícia. Seu bunker abriga a sede da Rádio Kawsachun Coca, emissora ouvida principalmente por agricultores.

Cochabamba produz o equivalente a US$ 110 milhões (R$ 635,8 milhões) por ano em folhas de coca, grande parte desviada para a produção ilegal de cocaína. Morales, que ganhou destaque nos anos 1990 como líder sindical dos produtores de coca, está lá desde outubro.

Marcha diária

O acampamento ao seu redor tem crescido. Agora, conta com cerca de 2 mil apoiadores leais preparados para defendê-lo. Todos os dias, às 10h, eles marcham ao redor do bunker, brandindo paus como sinal de força e unidade. Quem tentar prender Morales “não sairá vivo”, disse um integrante da segurança a jornalistas da Bloomberg, durante uma visita ao complexo. Usava roupa camuflada, um fone de comunicação e uma pochete com equipamentos.

Como presidente entre 2006 e 2019, Morales usou seu poder para modificar leis e substituir juízes, permitindo-se governar por três mandatos consecutivos. Candidatou-se a um quarto mandato após juízes nomeados por ele decidirem que era seu “direito humano” concorrer novamente. Agora, um tribunal declarou sua candidatura inválida devido ao limite de mandatos, mas Morales contesta essa decisão.

Muitos ainda se lembram da polêmica de sua última campanha. Em 2019, foi acusado de tentar fraudar as eleições enquanto denunciava um golpe de Estado contra seu governo. Acabou fugindo para o México em meio a protestos que deixaram pelo menos 37 mortos. Só voltou à Bolívia no ano seguinte, quando seu ex-ministro da Economia, Luis Arce, foi eleito presidente. Mas Arce passou de aliado a seu principal adversário.

Agora, Arce planeja buscar a reeleição e tomou o controle do partido Movimento ao Socialismo (MAS), fundado por Morales. Isso forçou o antigo aliado a buscar uma nova legenda para lançar sua candidatura.

Entrevista encerrada

A Bolívia tem um histórico de prisões cinematográficas de figuras políticas. A ex-presidente Jeanine Áñez, que substituiu Morales no vácuo de poder deixado por sua fuga, foi detida escondida debaixo da cama em 2021. Em 2022, a polícia interceptou a caravana do governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, quebrou o vidro de seu carro e usou gás lacrimogêneo para capturá-lo, antes de levá-lo à prisão de helicóptero.

Tentar ver Morales pessoalmente dá uma noção dos desafios que a polícia enfrentaria para prendê-lo. Além das barreiras de troncos e pedras, há um anel externo do acampamento e um segundo ponto de controle, vigiado por dezenas de pessoas. Alguns observam de uma torre de vigilância sob um cartaz que identifica o local como “Estado-Maior do Povo”. Há ainda um terceiro posto de controle na entrada da rádio, onde visitantes são revistados. Dentro da propriedade, mais seguranças inspecionam pertences.

O ex-presidente vive em uma propriedade murada, de onde comanda a campanha. Seu escritório está cheio de fotos e livros exaltando sua liderança. Na mesa, uma foto sua com a faixa presidencial. À esquerda, outra foto traz a inscrição: "O melhor presidente da História da Bolívia." À direita, uma foto ao lado de Castro e Chávez.

A poucos que passam pelo terceiro controle é permitido ver Morales. Seus auxiliares dizem que ele acorda às 4h para se exercitar e passa o dia planejando sua campanha. Ele não pode sair por medo de ser preso. Durante a visita, Morales admitiu certo desconforto em torcer pelo seu time favorito, o Club Bolívar, desde que o presidente da equipe, Marcelo Claure, intensificou ataques políticos a ele — um dos poucos bilionários da Bolívia, Claure o chamou de "pedófilo" e prometeu bancar qualquer candidato com chances de derrotar Morales e Arce, além de sugerir uma recompensa de US$ 1 milhão por sua captura.

Morales acredita que pode vencer se sua candidatura for aceita e exibe documentos de pesquisas privadas que supostamente comprovam isso. Ele rejeitou perguntas sobre a possibilidade de não poder concorrer.

— Não há plano B — disse, antes de encerrar abruptamente a entrevista, após 10 minutos. — É pátria ou morte.

Durante a entrevista, enfatizou que concorre porque os bolivianos pediram seu retorno. Ele se recusou a discutir os obstáculos legais e se ofendeu com as perguntas.

— Se for para isso a entrevista, suspendemos — disse, antes de sair.

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