Especialistas divergem se Trump tentou dar golpe ao incitar invasão do Congresso
O protesto que gerou cinco mortes, entre as quais a de um policial
Que foi um show de horrores violento e ilegal, isso ninguém discute. Mas dá para chamar de tentativa de golpe de Estado? A classificação mais apropriada para este 6 de janeiro divide especialistas desde que, sob a flauta do atual presidente dos EUA, Donald Trump, ativistas invadiram o Congresso. Eles tentaram interromper a sessão que certificou a vitória de seu sucessor, Joe Biden. E falharam.
Para Steven Levitsky, autor de "Como as Democracias Morrem?", a democracia americana sofreu, sim, um experimento golpista, se considerarmos o conjunto da obra. "Desde que perdeu, Trump vem buscando reverter, e até roubar, a eleição e permanecer no poder antidemocraticamente", diz ao jornal Folha de S.Paulo.
Ele cita como exemplo o episódio em que o republicano pressionou o secretário de Estado da Geórgia, responsável pelas eleições no estado, a "encontrar votos" que o ajudassem a superar Biden, porque manter as coisas do jeito que estavam sairia "muito caro de várias maneiras".
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"Ele teria tentado fazer com que os militares apoiassem algum tipo de declaração de lei marcial e possível cancelamento do resultado eleitoral. E, na quarta, incitou uma multidão a atacar o Capitólio", afirma Levitksy. "Todo o processo foi inepto e semelhante a um circo. Não funcionou. Mas foi claramente uma tentativa de 'autogolpe', como dizemos em espanhol."
O que se viu em Washington foi "excepcionalmente bizarro e incomum", mas não há por que gastar o rótulo de golpismo aqui, escreveu em artigo para o City Journal Bruno Maçães, autor de "History Has Begun: The Birth of a New America" (a história começou: o nascimento de uma nova América).
"O dia certamente foi ilegal, mas não havia condição de tomar o poder enviando uma galeria de cosplay com personagens ecléticos para o Congresso. Mesmo como pretexto para uma ação militar de Trump, o evento dificilmente era adequado."
Se há um momento que se aproximou de uma tomada ilegal do poder, "o melhor candidato é a ligação para o secretário da Geórgia", diz o cientista político à reportagem. "Mas o que há nos Estados Unidos não são fatos, e sim uma realidade coberta por dezenas de narrativas. Trump também vive delas. Temos a sensação de nunca sair de dentro de ficções. Provoca vertigem."
Clayton Besaw calcula as chances de Trump conseguir dar um golpe até a posse de Biden: 0,08%. Como analista da One Earth Future, fundação que avalia riscos de governos serem destituídos ilegalmente, ele mensura eventos similares mundo afora –o Sudão é a nação mais a perigo em 2021 (5,2%), já o Brasil, "com condições estruturais que propiciam ambiente melhor para um golpe do que os EUA", tem 0,5%.
"Normalmente, você precisaria da maioria dos oficiais do mais alto escalão a bordo de um enredo golpista, e isso acontece quando você tem instituições muito fracas e perspectivas econômicas ruins", diz Besaw.
Por ora, então, os EUA estão a salvo. A insurreição trumpista se aproxima mais da "violência eleitoral que atormenta muitas democracias frágeis", segundo Besaw.
Três parâmetros ajudam a definir um golpe: 1) os perpetradores são agentes do Estado, como oficiais militares ou servidores?; 2) o alvo é o chefe do Executivo (ou o próximo presidente, no caso)?; 3) os conspiradores se valem de métodos inconstitucionais?
O protesto que gerou cinco mortes, entre as quais a de um policial, preenche as categorias dois e três, o que não basta para ser um golpe ou a tentativa de um. Nessa galeria estão o Brasil de 1964 e o Egito em 2013, quando o general Abdel Fattah al-Sisi removeu o democraticamente eleito Mohamed Morsi.
Sobre o primeiro requisito: os manifestantes pareciam ser civis operando por vontade própria, não atores estatais. "Trump incitou seguidores a marchar até o Capitólio, insistindo que a eleição foi roubada e dizendo 'não vamos aguentar mais'. Isso após meses espalhando conspirações que criaram uma percepção de prevaricação do governo na mente de muitos apoiadores."
Talvez o item 1 fosse preenchido caso Trump tivesse convencido o secretário de Estado a alterar os votos na Geórgia ou se Mike Pence, vice-presidente dos EUA, tivesse aceitado a proposta do chefe de mudar unilateralmente o resultado das eleições em estados vencidos por Biden. Não aconteceu.
Erica de Bruin, cientista política que escreveu "How to Prevent Coups d'État" (como prevenir golpes de estado), também descarta a entrada dos EUA nesse infame rol. Nem por isso o motim insuflado por Trump é menos grave, segundo ela. Pior: é mais fácil identificar investidas golpistas, "mas sabemos bem menos sobre como se proteger de ações antidemocráticas", escreveu ela no New York Times.
O jornal americano dedicou um editorial para tentar entender como o Congresso do autoproclamado guardião da democracia global amanheceu com vidros quebrados, móveis danificados e grafites nas paredes. Graças ao empurrãozinho do líder maior da nação.
"Há uma divisão profunda até mesmo sobre como chamar os eventos que se desenrolaram: golpe fracassado? Insurreição? Terrorismo doméstico?". A história dirá.