Estado do Rio registrou uma chacina policial a cada nove dias desde 2007, indica estudo
Relatório foi lançado exatamente um ano depois da operação mais letal da história do Rio, no Jacarezinho
Entre 2007 e 2021, o estado do Rio foi palco de 593 chacinas policiais, que contabilizaram, ao todo, 2.374 mortes. Na média, uma ocorrência do gênero aconteceu em solo fluminense a cada nove dias ao longo dessa década e meia. Os dados fazem parte de um relatório elaborado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O material foi divulgado nesta sexta-feira (6), data em que completa-se exatamente um ano da mais letal operação da história do Rio, quando 27 suspeitos, além de um policial civil, perderam a vida no Jacarezinho, na Zona
O estudo classifica como chacina ações policiais com três mortos ou mais, metodologia utilizada com frequência por pesquisadores da área de segurança pública. Segundo o relatório, o estado registrou 17.929 operações de forças de segurança durante os 15 anos analisados, das quais 3,3% — ou uma a cada 30 — se encaixam na categoria. Contudo, o percentual dos óbitos relativos a chacinas diante do total de autos de resistência é muito maior, superando os 40% tanto no recorte da Região Metropolitana quanto no da capital.
"Esta grande concentração das mortes durante operações policiais em chacinas nos permite afirmar que uma possível atuação para evitar esse tipo de ocorrência teria um impacto muito grande não apenas nestes eventos particulares inaceitáveis, como também na escala da letalidade em operações policiais", afirmam os autores do estudo. "Quando é baixo o controle no uso da força por policiais ou são eles estimulados ao seu uso ilimitado, as polícias se tornam mais propensas a cometerem chacinas", diz outro trecho do texto.
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De acordo com a pesquisa, o Jacarezinho é a quarta localidade da capital com mais registros de chacina, atrás de Costa Barros, do Complexo da Maré e da Penha, bairro onde ficam os complexos do Alemão e da Penha. Porém, com os números puxados pelo episódio em 6 de maio do ano passado, a comunidade é a recordista em mortes do gênero, com 112 vítimas — o Jacarezinho também é o único ponto da cidade em que foi ultrapassada a marca de uma centenas de óbitos durante chacinas no período considerado.
— Nossa principal motivação era justamente entender o que havia acontecido no Jacarezinho para, a partir daí, ver se era possível estabelecer algumas características mais gerais sobre as chacinas policiais. E foi bastante impactante perceber que a chacina ocorrida ali não foi algo fora da curva, um evento único e singular. É claro que o número de mortos, em si, foi algo sem precedentes. Mas, do ponto de vista estatístico, a chacina do Jacarezinho foi um exemplo que se encaixa perfeitamente no quadro geral — explica o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni.
Predominância da Zona Norte
O pesquisador cita, por exemplo, a predominância da Zona Norte da capital nas operações policiais que resultam em pelo menos três mortes. A região concentra mais da metade (58%) dos casos registrados na cidade, o que leva o relatório a afirmar que "lugares menos expostos ao controle social exercido pela opinião pública parecem ser mais propícios à ocorrência de chacinas do que aqueles com maior visibilidade".
Outro elemento que faz do caso do Jacarezinho uma ilustração fidedigna do cenário mais amplo, ainda segundo Hirata, é o fato de que tratava-se de uma operação da Polícia Civil. O estudo aponta que as chacinas com a presença da corporação computam uma média de cinco mortos cada, contra quatro dos episódios envolvendo a Polícia Militar. "Como é possível que uma instituição que deveria atuar sob prerrogativas de funções eminentemente judiciárias ocasione mais mortes do que aquela cuja atribuição é de policiamento ostensivo?", perguntam os pesquisadores.
O relatório também destrincha o papel das unidades especializadas das duas instituições nesse tipo de ocorrência. Ações com participação da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil, e do Batalhão de Operações Especiais (Bope), da PM, têm 2,5 vezes mais chances de resultar em uma chacina do que as protagonizadas por batalhões ou delegacias comuns. O número dispara ainda mais quando as duas forças especiais incursionam juntas, situação que ocasiona três mortes ou mais em 18% das vezes, ou uma a cada seis operações compartilhadas.
Mais uma vez, os pesquisadores do Geni questionam o panorama retratado. "Tais unidades especiais, em tese, deveriam ser mais preparadas do ponto de vista tático e operacional com vistas a diminuir os efeitos letais e os riscos de perdas humanas na atuação em áreas densamente povoadas e com a presença de grupos armados", discorre o texto.
Mais mortes em áreas de tráfico
O estudo conclui ainda que as chacinas policiais matam quatro vezes mais em áreas sob domínio do tráfico, como ocorre no Jacarezinho, do que de milícias. Considerando todos os mortos nos 15 anos esmiuçados, 45,2% eram de regiões controladas pelo comércio varejista de drogas, contra 41,8% de territórios que vivenciavam na ocasião disputas armadas e 12,1% de localidades nas mãos de grupos paramilitares.
— Os números deixam evidente que há uma ausência de cautela maior quando da atuação em áreas de tráfico ou em disputa, que concentram essa atuação brutal da polícia, na comparação com a milícia. Além disso, quando as forças de segurança entram em regiões conflagradas, a leitura acaba sendo a de que todos são bandidos, e há uma permissividade maior do uso exagerado da força — analisa Daniel Hirata.
Procuradas pelo EXTRA, tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil frisaram a redução de 30% nos homicídos decorrentes de intervenção policial no primeiro trimestre de 2022, na comparação com o mesmo período do ano passado. A Polícia Civil acrescentou que as "mortes ocorridas durante operações são em decorrência de confrontos de criminosos" contra os agentes, e que "a reação da Polícia Civil durante as ações depende da conduta do criminoso".
Já a PM lembrou a aquisição recente de câmeras pela corporação. "Para dar continuidade a essas reduções e garantir transparência às ações policiais, o Governo do Estado do Rio realizou a maior licitação para a aquisição de câmeras a serem utilizadas por agentes de segurança já feita no país", diz a nota. "A partir do dia 16 de maio, esses equipamentos passarão a ser utilizados pelos policiais militares de 10 batalhões da capital", conclui a corporação.
A iniciativa é vista com bons olhos por Daniel Hirata. O sociólogo frisa, entretanto, que é preciso estendê-la às áreas mais críticas, com maior incidência de operações violentas. Até o momento, o único teste foi realizado em Copacabana, durante o revéillon.
— O uso das câmeras é um instrumento muito importante para controlar o uso abusivo da força, como mostra toda a experiência nacional e internacional. Mas há duas questões a serem consideradas: as câmeras são apenas equipamentos. Elas precisam estar integradas a um fluxo de acesso interno e externo desse material, por exemplo. A segunda ressalva é que só teremos condição de avaliar melhor a efetividade disso quando essas imagens registrarem operações policiais em outras regiões. Seria, de fato, um ganho muito grande — afirma o coordenador do Geni.