Estudantes mais pobres aprenderam a metade do que colegas na escola durante pandemia, diz estudo
Para especialistas, recuperação de aprendizagem perdida durante isolamento terá que ser objetivo em 2023
Maiara Santos, de 19 anos, não fez o ensino médio. Durante a pandemia, a jovem recebeu só conteúdos por apostilas e, sem conexão adequada, tinha muitas dificuldades em tirar dúvidas. A situação financeira da família apertou e começou a fazer bicos de babá e de garçonete. Perdeu o tempo e o interesse pelos estudos.
— Cheguei a passar de ano mesmo sem nota. Mas não fui fazer matrícula para o ano seguinte porque ainda estava na pandemia. Desisti de estudar — conta Santos.
A jovem faz parte de uma geração profundamente prejudicada pela maior crise sanitária dos últimos cem anos, cuja recuperação de aprendizagem será um passivo que chegará ao próximo governo federal. E os problemas não são poucos. Estudo obtido com exclusividade pelo O Globo aponta que a educação pós-pandemia a ser encarada a partir de 2023 é mais desigual, tem menores índices de aprendizagem e mais crianças e adolescentes fora da escola.
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O trabalho “Impactos da pandemia na educação brasileira” foi encomendado a dois pesquisadores da UFRJ pela associação D3e e pela Fundação Lemann.
Evasão subdimensionada
Entre as principais descobertas, estão o fato de que a perda de aprendizagem foi de 4 a 10 meses, dependendo da etapa escolar; de que crianças de nível socioeconômico baixo aprenderam apenas a metade de seus pares em melhor condição; e de que a taxa de matrícula caiu abaixo de 2017 entre crianças de zero e 14 anos. São pelo menos cinco antes do retrocesso na evasão escolar.
Na faixa entre 4 e 5 anos, a proporção de alunos matriculados caiu de 86,9% em 2019 para 82,2% em 2021. Em 2017, era de 85,9%. Esta é uma etapa de ensino obrigatória, em que os alunos já começam a se preparar para a alfabetização no começo do ensino fundamental.
— A meu ver, todos os dados que temos hoje de abandono escolar estão subdimensionados. Em 2023, teremos um cenário mais claro de quantas crianças estão fora da escola, com o Censo Escolar e o Censo do IBGE — afirma a coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais da UFRJ, Mariane Koslinski, que assina o estudo com o pesquisador Tiago Bartholo.
Ainda segundo o estudo, o Ministério da Educação precisa “assumir um papel de protagonismo na elaboração e na implementação de um plano nacional de recuperação, com aportes adicionais de recursos para guiar e apoiar as ações de gestores públicos estaduais e municipais da área de educação”.
“Quero mudar de vida”
Maiara não pensa em voltar para as salas de aula, mas não desistiu de estudar. Agora, deseja terminar o ensino médio através do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), uma prova que atesta o conhecimento necessário para o ensino fundamental ou médio. Ela já fez o exame e espera o resultado.
— Pegando o diploma do ensino médio, posso fazer alguns cursos e concursos que exigem esse certificado. E eu quero muito mudar de vida — conta.
Koslinski aponta que dificuldades vividas por alunos como Maiara causaram a mais grave consequência da pandemia: o aprofundamento das desigualdades educacionais. De acordo com a nota técnica dos pesquisadores da UFRJ, há diferentes hipóteses que podem explicar isso.
“Durante a crise sanitária, os estudantes mais pobres e com pais menos escolarizados provavelmente foram mais prejudicados no acesso e na capacidade de usar a tecnologia para o aprendizado no formato remoto. A qualidade do seu ambiente de aprendizagem em casa e o apoio que receberam dos professores e pais, além da condição dentro de suas casas para estudar autonomamente, também impactaram a sua aprendizagem”, diz o texto do relatório, que será disponibilizado hoje.
— O MEC tem um papel indutor muito forte. Ele tem capacidade financeira de ajudar com recursos, mas só isso não adianta. É especialmente importante que ele apoie com conhecimento técnico do que estados e municípios devem fazer com esse dinheiro — afirmou Daniel de Bonis, diretor de Conhecimento, Dados e Pesquisa na Fundação Lemann.
Propostas
O texto apresenta ainda diversas estratégias de recomposição de aprendizagens que têm sido desenvolvidas no Brasil e em outros países. Segundo o trabalho, algumas sugerem a expansão do tempo de instrução (ampliação dos dias letivos, abertura das escolas nos fins de semana ou “escola nas férias”). Outras, bastante difundidas, e que já contam com evidências de impacto positivo, é a tutoria individual ou em pequenos grupos nos formatos presencial, híbrido ou online.
Para a evasão, iniciativas de busca ativa necessitam de três aspectos fundamentais: mobilização comunitária, estratégias de gestão e monitoramento das frequências dos alunos e auxílio financeiro de permanência estudantil.
Segundo Bonis, essas são medidas de curto prazo que têm se mostrado eficientes em diferentes contextos analisados. No entanto, ele afirma que, a médio e longo prazo, o país precisa ampliar o número de matrículas de educação integral — ou seja, a oferta permanente de um tempo ampliado de aulas.
— Essa é, de fato, a estratégia que custa mais e leva mais tempo, porque precisa de mais professores e mais prédios. Mas o Brasil vive um momento demográfico favorável para essa ampliação, com a chegada de menos alunos por ano. Além disso, o país precisa corrigir o fluxo, porque tem uma reprovação muito alta. Isso não quer dizer aprovação automática, mas é preciso uma recuperação contínua para o aluno progredir — afirma Bonis. — O ensino integral é um desafio do ponto de vista de custo, mas tem elementos estruturantes. E a experiência já demonstrou que se traduz mesmo em aprendizagem.