Estudo com THC em veteranos de guerra com estresse pós-traumático tem aprovação histórica nos EUA
Participantes poderão fumar cannabis de alto poder psicoativo para reduzir sintomas do transtorno
A organização não governamental sem fins lucrativos Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) conseguiu aprovar recentemente, junto ao FDA (órgão do governo norte-americano que faz o controle de alimentos e medicamentos) um estudo sobre o uso medicinal da cannabis por veteranos de guerra com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
O que estava em jogo nessa aprovação histórica não é somente um ensaio clínico, mas um debate maior sobre ciência, estigma e a necessidade de flexibilização regulatória para o desenvolvimento de novas abordagens para condições que os tratamentos convencionais muitas vezes não conseguem alcançar.
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O estresse pós-traumático
O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é uma das condições mais devastadoras que podem surgir após vivências emocionalmente impactantes. Para veteranos de guerra, o TEPT não é apenas um diagnóstico: é uma sombra constante que afeta sono, relações e a própria vontade de viver.
Só nos Estados Unidos, 18 a 20 veteranos tiram a própria vida todos os dias — uma estatística alarmante para um país que vive envolvido em situações de guerra.
Mas o TEPT não é um privilégio exclusivo de países em conflitos armados, já que é relativamente comum também em situações de violência urbana, como assaltos, acidentes e abusos físicos.
Na região de São Paulo, estima-se que o TEPT tenha uma prevalência de 3,2% da população ao longo da vida: seria algo como 400 mil pessoas na maior cidade do nosso país sofrendo com esse transtorno devastador. Ou seja, é algo relevante mesmo fora dos EUA e que também nos diz respeito.
Cannabis para TEPT
Conforme protocolo disponível online, o estudo aprovado pelo FDA será conduzido com cerca de 320 veteranos que poderão consumir cannabis de alto teor de THC (o canabinoide tetrahidrocanabinol, normalmente associado aos efeitos psicoativos da maconha) de forma “naturalística” — ou seja, no estilo da vida real, sem doses fixas. Isso reflete melhor como a substância é usada fora de um ambiente clínico, oferecendo dados mais úteis para médicos e pacientes.
Num curioso processo “inverso” — que acontece nas situações em que o uso medicinal da planta antecede as evidências científicas —, o formato do estudo se justifica porque muitos veteranos de guerra americanos já usam cannabis como um remédio informal, para aliviar os sintomas que sentem. Como frequentemente acontece nesta área de pesquisa, agora há uma chance de validar cientificamente os benefícios relatados, como redução de ansiedade, melhora do sono e redução no uso de medicamentos tradicionais.
Uma discussão pertinente que vem de reboque: cannabis fumada pode ser considerada medicinal? Esse tópico é polêmico, mas ela já é usada medicinalmente desde a década de 80, no contexto do controle de dor neuropática dos pacientes HIV positivo tratados por Donald Abrams, médico da Califórnia famoso pelo pioneirismo no tema e ainda muito ativo academicamente.
Segundo a opinião desse médico experiente no tema, a forma fumada de cannabis pode, sim, ser medicinal, embora a forma vaporizada seja preferencial. O FDA parece que também se convenceu disso, pelo menos no âmbito da pesquisa científica.
Queda de braço
A aprovação do estudo em si é um marco. Foi uma dura luta de trêw anos da MAPS com o FDA, basicamente tentando convencê-los de alguns pontos importantes do estudo.
Os pontos principais questionados pelo FDA e rebatidos pela MAPS:
- Alta dosagem de THC: o FDA temia que doses mais altas pudessem gerar riscos desproporcionais aos participantes.
- Cannabis fumada: o ato de fumar em si não era considerado medicinal pelo FDA e trouxe preocupações de segurança.
- Uso de vaporizadores: embora teoricamente reduzam riscos, os dispositivos precisam de mais validação técnica para uso clínico com autorização sanitária.
- Participantes sem experiência prévia com cannabis: a agência alegou que poderia ser arriscado incluir pessoas que nunca usaram maconha no estudo.
Para ganhar essa queda de braço, a MAPS precisava convencer o FDA que a dose proposta é segura, que faz sentido considerar cannabis fumada como uso medicinal, e que é seguro incluir no estudo indivíduos que nunca usaram maconha.
Foi uma briga difícil. Após negociações, a MAPS aceitou que o protocolo do estudo fosse ajustado: participantes deverão ter experiência prévia com cannabis, e o uso de vaporizadores permanece suspenso até novos dados de segurança. Sim, é isso mesmo que você leu: o uso de baseados fumados foram aceitos, enquanto os dispositivos específicos — que todo usuário considera melhor para a saúde — não foi considerado clinicamente válido.
Entre liberalidades e regulamentações
Os Estados Unidos praticamente lideram a abertura do mercado do CBD (o canabidiol, outro canabinoide que compõe a maconha, geralmente associado às possibilidades terapêuticas da planta). Já são 50 estados do país que aprovam o uso medicinal de cannabis e 24 que aprovam inclusive o uso recreativo.
Curiosamente, no mesmo país a pesquisa com THC é extremamente difícil de ser aprovada. Apesar da aparente liberalidade, as regulamentações federais dificultam muito o acesso de pesquisadores à planta para fins de estudo.
A maconha, com seu status de droga ilícita durante os últimos mais de 60 anos, sofre um estigma persistente e muito difícil de ser transposto, mesmo com argumentos científicos.
A luta da MAPS mostra que o progresso na ciência exige coragem para desafiar normas e preconceitos. Assim como a psicoterapia assistida por MDMA transformou o debate sobre tratamentos para TEPT, o estudo com cannabis pode abrir portas para um uso mais racional e embasado da planta e seus derivados.
Persistência
A MAPS foi manchete nos últimos tempos por não ter conseguido aprovar um registro na mesma área terapêutica, mas com outra substâncias. Agora, a organização dá “a volta por cima”, aprovando o primeiro estudo com cannabis fumada de alto teor de THC no FDA. Isso abre um novo capítulo na batalha dos veteranos de guerra por terapias alternativas mais eficazes para o transtorno do estresse pós-traumático.
Essa aprovação histórica mostra que há esperança e é preciso ser insistente frente aos inúmeros obstáculos para se realizar pesquisa com cannabis medicinal — mesmo nos EUA, o país que vem gradativamente se abrindo cada vez mais a uma legalização total da planta.
Para veteranos que carregam as cicatrizes da guerra, isso pode ser a diferença entre o desespero e a esperança. E, para todos nós, é um lembrete de que estigma nunca deve ser um obstáculo para a busca de conhecimento — especialmente quando vidas humanas estão em jogo.