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EUA temem ataque nuclear conjunto da China, Rússia e Coreia do Norte, diz jornal

Por muito tempo, Washington se concentrou apenas em conter o avanço da Rússia; impulso na indústria nuclear chinesa e novas alianças geopolíticas elevaram o nível de tensão no setor

O presidente chinês, Xi Jinping (à esq.), e seu homólogo americano, Joe Biden (à dir.) durante encontro do G20 na Indonésia, em 2022 O presidente chinês, Xi Jinping (à esq.), e seu homólogo americano, Joe Biden (à dir.) durante encontro do G20 na Indonésia, em 2022  - Foto: Saul Loeb/AFP

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, aprovou em março um plano estratégico nuclear altamente secreto que, pela primeira vez, reorienta a estratégia de dissuasão americana mirando a rápida expansão do arsenal nuclear da China, revelou o New York Times nesta terça-feira.

A mudança ocorre no momento em que o Pentágono acredita que o arsenal nuclear da China atingirá o tamanho e a diversidade dos estoques dos Estados Unidos e da Rússia na próxima década.

A Casa Branca nunca anunciou que Biden havia aprovado a revisão da estratégia, chamada de “Orientação de Emprego Nuclear”, que também busca preparar os Estados Unidos para possíveis desafios nucleares coordenados entre China, Rússia e Coreia do Norte.

 

O documento, atualizado a cada quatro anos aproximadamente, é tão altamente secreto que não há cópias eletrônicas, apenas um pequeno número de páginas impressas distribuídas a algumas autoridades de segurança nacional e comandantes do Pentágono.

No entanto, em discursos recentes, dois altos funcionários do governo foram autorizados a fazer alusão à mudança — em frases únicas e cuidadosamente limitadas — antes de uma notificação mais detalhada e não confidencial ao Congresso, esperada para acontecer antes de Biden deixar o cargo, em janeiro.

— O presidente emitiu recentemente uma orientação atualizada sobre o emprego de armas nucleares para levar em conta vários adversários com armas nucleares — disse Vipin Narang, estrategista nuclear do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (M.I.T.) que serviu no Pentágono, no início deste mês, antes de retornar à academia. — E, em particular, a orientação sobre armas levou em conta o aumento significativo no tamanho e na diversidade do arsenal nuclear da China.

Em junho, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional para controle de armas e não-proliferação, Pranay Vaddi, também se referiu ao documento — o primeiro a examinar detalhadamente se os Estados Unidos estão preparados para responder a crises nucleares que podem eclodir simultaneamente ou sequencialmente, com uma combinação de armas nucleares e não nucleares.

A nova estratégia, disse Vaddi, enfatiza “a necessidade de deter a Rússia, a RPC e a Coreia do Norte simultaneamente”, usando o acrônimo para a República Popular da China.

No passado, a probabilidade de que os adversários americanos pudessem coordenar as ameaças nucleares para superar o arsenal nuclear americano parecia remota. Mas a parceria emergente entre a Rússia e a China e as armas convencionais que a Coreia do Norte e o Irã estão fornecendo à Rússia para a guerra na Ucrânia mudaram fundamentalmente o pensamento de Washington.

A Rússia e China já estão realizando exercícios militares em conjunto. Agora, as agências de inteligência ocidentais tentam descobrir se Moscou está colaborando com os programas de mísseis da Coreia do Norte e do Irã em contrapartida.

O novo documento é um lembrete claro de que quem quer que seja empossado na Casa Branca no próximo dia 20 de janeiro enfrentará um cenário nuclear alterado e muito mais volátil do que aquele que existia há apenas três anos. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, ameaçou repetidamente o uso de armas nucleares contra a Ucrânia, inclusive durante uma crise em outubro de 2022, quando Biden e seus assessores, observando interceptações de conversas entre comandantes russos seniores, temiam que a probabilidade de uso nuclear pudesse aumentar para 50% ou até mais.

Biden, juntamente com os líderes da Alemanha e do Reino Unido, fez com que a China e a Índia fizessem declarações públicas de que não havia motivos para o uso de armas nucleares na Ucrânia, e a crise diminuiu, pelo menos temporariamente.

— Foi um momento importante — observou Richard N. Haass, ex-funcionário sênior do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional de vários presidentes republicanos e presidente emérito do Council on Foreign Relations, em uma entrevista. — Estamos lidando com uma Rússia que está radicalizada; a ideia de que as armas nucleares não seriam usadas em um conflito convencional não é mais uma suposição segura.

A segunda grande mudança decorre das ambições nucleares da China. A expansão nuclear do país está ocorrendo em um ritmo ainda mais rápido do que as autoridades de inteligência americanas previram há dois anos, impulsionada pela determinação do presidente Xi Jinping de descartar a estratégia de décadas de manter uma “dissuasão mínima” para alcançar ou exceder o tamanho dos arsenais de Washington e Moscou. O complexo nuclear da China é hoje o que cresce mais rapidamente no mundo.

Embora o ex-presidente americano Donald Trump tenha previsto com confiança que Kim Jong-un, o líder norte-coreano, entregaria suas armas nucleares após suas três reuniões pessoais, aconteceu o contrário. Kim dobrou seu número de armas e agora tem mais de 60, segundo as autoridades, e o combustível para muitas outras.

Essa expansão mudou a natureza do desafio norte-coreano: quando o país possuía apenas um punhado de armas, podia ser dissuadido por defesas antimísseis. Mas seu arsenal expandido está se aproximando rapidamente do tamanho do Paquistão e de Israel, e é grande o suficiente para que possa, em teoria, coordenar as ameaças com Moscou e Pequim.

Era apenas uma questão de tempo até que um ambiente nuclear fundamentalmente diferente começasse a alterar os planos e a estratégia de guerra dos Estados Unidos, dizem as autoridades.

— É nossa responsabilidade ver o mundo como ele é, não como esperávamos ou desejávamos que fosse — disse Narang ao sair do Pentágono. — É possível que um dia olhemos para trás e vejamos o quarto de século após a Guerra Fria como um intervalo nuclear.

O novo desafio é “a possibilidade real de colaboração e até mesmo de conluio entre nossos adversários com armas nucleares”, disse ele.

Até agora, na campanha presidencial, os novos desafios para a estratégia nuclear americana não têm sido um tópico de debate. Biden, que passou grande parte de sua carreira política como defensor da não proliferação nuclear, nunca falou publicamente em detalhes sobre como está respondendo aos desafios de dissuadir as forças expandidas da China e da Coreia do Norte. Tampouco o fez a vice-presidente Kamala Harris, atual candidata do Partido Democrata.

Em sua última coletiva de imprensa, em julho, poucos dias antes de anunciar que não buscaria mais a indicação democrata para um segundo mandato, Biden reconheceu que havia adotado uma política para buscar maneiras de interferir na parceria mais ampla entre a China e a Rússia, mas sem dar mais detalhes.

— Sim, eu tenho, mas não estou preparado para falar sobre os detalhes disso em público — disse Biden, sem fazer referência na época (e também não foi perguntando sobre) como essa parceria estava alterando a estratégia nuclear americana.

Desde a presidência de Harry Truman, a estratégia americana se concentra predominantemente no arsenal do Kremlin. A nova orientação de Biden sugere a rapidez com que isso está mudando.

A China foi mencionada na última orientação nuclear, emitida no final do governo Trump, de acordo com um relato não confidencial fornecido ao Congresso em 2020. Mas isso foi antes que o escopo das ambições de Xi fosse compreendido.

A estratégia de Biden aprimora esse foco para refletir as estimativas do Pentágono de que a força nuclear da China se expandirá para 1.000 até 2030 e 1.500 até 2035, aproximadamente os números que os Estados Unidos e a Rússia agora empregam. De fato, Pequim parece estar adiantada em relação a esse cronograma, dizem as autoridades, e começou a carregar mísseis nucleares em novos campos de silo que foram detectados por satélites comerciais há três anos.

Há outra preocupação com relação a Pequim: o país interrompeu uma conversa de curta duração com os Estados Unidos sobre o aprimoramento da segurança nuclear — por exemplo, concordando em avisar um ao outro sobre testes de mísseis iminentes, ou estabelecendo linhas diretas ou outros meios de comunicação para garantir que incidentes ou acidentes não se transformem em encontros nucleares.

Uma discussão entre os dois países ocorreu no final do outono passado, pouco antes de Biden e Xi se encontrarem na Califórnia, onde buscaram reparar as relações entre os dois países. Eles se referiram a essas conversas em uma declaração conjunta, mas naquela época os chineses já haviam dado a entender que não estavam interessados em novas discussões e, em meados deste ano, disseram que as conversas haviam terminado. Eles citaram as vendas de armas americanas para Taiwan, que estavam em andamento muito antes do início das conversas sobre segurança nuclear.

Mallory Stewart, secretária assistente de controle de armas, dissuasão e estabilidade do Departamento de Estado, disse em uma entrevista que o governo chinês estava “impedindo ativamente que conversássemos sobre os riscos”.

Em vez disso, disse ela, Pequim “parece estar seguindo a cartilha da Rússia de que, até abordarmos as tensões e os desafios em nosso relacionamento bilateral, eles optarão por não continuar nossas conversas sobre controle de armas, redução de riscos e não proliferação”. Era do interesse da China, argumentou ela, “evitar esses riscos de erros de cálculo e mal-entendidos”

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