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EUROPA

Europeus estocam pílulas de iodo contra efeito de radiação nuclear, mas especialistas pedem cautela

As pílulas de iodo são vendidas sem restrição médica e servem para prevenir o câncer de tireóide causado por iodo radioativo

 'Não temos pílulas de iodo', mostra cartaz afixado em farmácia de Zagreb, Croácia 'Não temos pílulas de iodo', mostra cartaz afixado em farmácia de Zagreb, Croácia - Foto: DENIS LOVROVIC / AFP

Em meio à guerra na Ucrânia, os europeus estão estocando pílulas de iodo, um medicamento simples, vendido em farmácia, que supostamente protege contra radiação nuclear. A alta demanda, associada à escassez em alguns locais, especialmente na região central do continente, também faz o preço disparar. Especialistas e autoridades internacionais, porém, não recomendam o uso indiscriminado dessa substância e alertam para seus efeitos limitados em caso de exposição à radiação.

— O uso de pastilhas de iodo é fundamentado e faz sentido num contexto de acidente ou guerra nuclear. Mas isso não justifica seu consumo indiscriminado, já que pode estimular outras doenças no organismo, inclusive autoimunes — afirma Antonio Carlos do Nascimento, um dos mais conceituados especialistas da América-Latina em endocrinologia e metabologia. — Além disso, sua ingestão não garante proteção contra outros elementos radioativos liberados em situações desse tipo, como Estrôncio-90 e Césio-137.

As pílulas de iodo são vendidas sem restrição médica e servem para prevenir o câncer de tireóide causado por iodo radioativo, especialmente em crianças. Elas contêm iodeto de potássio, um sal de iodo estável que é necessário ao corpo humano para produzir hormônios da tireóide, uma glândula que atua no metabolismo. O iodo presente no organismo humano vem da alimentação, mas o iodo radioativo liberado no ar após um evento nuclear pode ser inalado e absorvido pela glândula. As pílulas de iodo funcionam como um bloqueador à entrada desse iodo venenoso.

— A tireóide age contra o gradiente de saturação, captando o iodo circulante. Isso significa que quando a glândula tireoidiana está saturada de iodo bom, isso impede a absorção de iodo bom e ruim — explica Nascimento. — Não tem problema fazer isso por um ou dois dias, mas é preciso ter cuidado. Muitas pessoas são portadoras de hipertireoidismo ou suscetíveis a doenças da tireoide, e o uso dessas pílulas pode deflagrar crises tireotróficas e levar à morte. O risco é enorme do ponto de vista da saúde pública.
 

A busca por pílulas de iodo disparou há duas semanas, após o presidente russo, Vladimir Putin, colocar as forças de dissuasão nucleares do país em alerta máximo, em meio à invasão da Ucrânia. Um frasco de 180 comprimidos agora custa quase US$ 70 (cerca de R$ 350) na Amazon, mas antes, saía por US$ 30 (cerca de R$ 150).

A Ucrânia é fortemente dependente de energia nuclear e tem 15 reatores em operação que geram cerca de 54% das necessidades elétricas do país. Desde o início da guerra, em 24 de fevereiro, já foram registrados ao menos quatro ataques russos a instalações nucleares ucranianas, incluindo um incêndio na usina de Zaporíjia, a maior da Europa, na última sexta-feira.

Na Bélgica, mais de 30 mil caixas de comprimidos de iodo foram distribuídas apenas na segunda-feira da semana passada, segundo informações do canal Euronews. O mesmo ocorreu na Finlândia, que registrou uma demanda cem vezes maior; Holanda, onde algumas farmácias ficaram sem estoque depois que 90 mil pacotes foram vendidos na semana passada; Polônia e Romênia, que fazem fronteira com a Ucrânia; e República Tcheca, Croácia e Bulgária. Nos EUA, pesquisas no Google por "o iodo ajuda na guerra nuclear?" também aumentaram 1.150% nos últimos sete dias.

Todavia, o ideal é que o iodeto de potássio seja consumido apenas com recomendação médica e na fase inicial de um acidente nuclear típico, como o colapso de uma usina, afirmou Jerrold Bushberg, presidente do Conselho de Administração e vice-presidente sênior do Conselho Nacional de Proteção e Medições Radiológicas dos Estados Unidos, ao canal digital WTHR, afiliado da NBC americana.

De acordo com ele, após um colapso nuclear, a exposição ao iodo radioativo pode variar segundo vários fatores, entre eles a natureza e a magnitude do acidente, o terreno circundante, a velocidade e a direção dos ventos e as estruturas físicas da usina. São questões que devem ser consideradas pelos governos ao determinar a quem recomendar ou distribuir as pílulas de iodo.

A distribuição de iodo, porém, é apenas uma pequena parte da resposta ao problema e deve ser vista mais como uma forma de as vítimas “ganharem tempo até encontrarem um abrigo seguro”, diz o endocrinologista. Um documento da Agência Internacional de Energia Atômica, das Nações Unidas, por exemplo, mostra que evacuar a população, fornecer abrigo seguro e eliminar colheitas e animais contaminados pode ser mais amplamente eficaz.

Em caso de ataque nuclear, as pílulas de iodo tampouco têm eficácia. Segundo especialistas, uma bomba nuclear espalha rapidamente muito mais produtos químicos radioativos do que apenas iodo, como césio, estrôncio e cobalto. Ela pode até transformar elementos não radioativos em radioativos durante a explosão, disseram. E as pessoas nas imediações do ataque provavelmente seriam mortas pela violência física e pelo calor da explosão.

— [O efeito dessas pílulas] é pequeno demais perto da dimensão do desastre. Mas no desespero, as pessoas se agarram ao que têm — afirma Nascimento. — É uma questão de esperança.

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