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"Febre maculosa não vai causar epidemias, como dengue, malária e outras doenças", diz especialista

Em entrevista, Elba Lemos, que estuda a infecção há décadas, esclarece as principais dúvidas e explica por que um diagnóstico que tem tratamento apresenta uma letalidade tão alta

Médica e pesquisadora da Fiocruz Elba Lemos, chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Médica e pesquisadora da Fiocruz Elba Lemos, chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).  - Foto: Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz)

Nesta semana, a confirmação de que ao menos quatro pessoas morreram depois de frequentar um evento numa fazenda em Campinas, São Paulo, tem chamado atenção para a febre maculosa. A infecção bacteriana, transmitida por um carrapato, acendeu o alerta de autoridades de saúde locais, que monitoram a ocorrência de novos casos.

No país, anualmente, são apenas poucas centenas de registros. No pior ano do monitoramento do Ministério da Saúde, 2018, foram 314 diagnósticos. No entanto, destaca-se a alta letalidade: enquanto, no ano passado, 37% dos pacientes morreram no Brasil, em São Paulo, estado mais afetado, a taxa chegou a mais de 7 a cada 10 contaminados.

Em entrevista ao Globo, a médica e pesquisadora da Fiocruz Elba Lemos, chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), serviço de referência do ministério para a doença, fala sobre os principais desafios no combate à febre maculosa.

Desde quando existem casos da febre maculosa no Brasil?
É uma doença velha, desde o início do século passado ela foi identificada no Brasil. Os primeiros relatos foram por volta de 1929, e naquela época era chamada de “sarampão” pela semelhança (clínica, com o sarampo). Ela é causada por bactérias do gênero Rickettsia. São mais de 16 espécies no mundo todo, mas aqui, e no continente americano, a mais importante é a Rickettsia rickettsii, que predomina e causa mais morte.

Mas temos também no Brasil a Rickettsia parkeri, que foi identificada na Bahia, em São Paulo e mais no Sul causando quadros mais leve. Isso está de acordo quando olhamos para o cenário epidemiológico nacional. Predominantemente, as mortes só ocorrem nos estados da região Sudeste. No Sul, há casos, mas quase não há óbitos.

A febre maculosa pode se espalhar e causar epidemias?
A febre maculosa não vai causar epidemias, como dengue, malária, entre outras doenças, o que acontece são casos isolados ou pequenos surtos, com três, cinco, às vezes 10 pessoas, e só. Porque a transmissão é apenas pelo carrapato. O problema é que, como não é uma doença de grande frequência, não existe conhecimento da classe de saúde, então ela é muito esquecida.

É uma doença que os profissionais não colocam no “cardápio” como um diagnóstico diferencial. Por exemplo, praticamente todos os casos fatais de febre maculosa no Rio de Janeiro tiveram, no início, o diagnóstico equivocado para dengue.

Existem doenças que têm uma importância de saúde pública por gerar um número imenso de casos, mas existe um outro grupo, que também precisa de atenção, que nunca vai causar epidemias, mas cujo impacto é significativo pela alta letalidade. É o caso da febre maculosa.

Por que o diagnóstico é tão difícil?
O início da doença da febre maculosa é igual a várias outras doenças com maior frequência no Brasil, como dengue, gripe e leptospirose. Então conversar com o paciente passa a ser importante para saber onde ele esteve, se ele teve contato com carrapato, com animais, se foi a uma área que sabemos ter a doença, se fez ecoturismo, visitou áreas de floresta.

E diante de um paciente com quadro infeccioso em que há a possibilidade de ser febre maculosa, o profissional de saúde precisa pensar que a doença pode matar se ele não interferir rapidamente. Isso quer dizer coletar o material para encaminhar para o laboratório, mas já começar imediatamente o tratamento se achar que pode ser a doença. O fator tempo é fundamental.

A febre maculosa tem tratamento efetivo?
A febre maculosa é uma doença de tratamento barato, com um antibiótico que não tem resistência bacteriana e que pode ser encontrado por menos de 25 reais. Ele funciona perfeitamente bem e leva à cura. Então as pessoas morrem principalmente pela falta de conhecimento, pelos médicos não considerarem a febre maculosa como um possível diagnóstico e iniciarem o tratamento a tempo.

Aí eles liberam esse paciente, que retorna lá pelo sétimo dia de doença. Mas, nesse tempo, a bactéria já fez uma destruição na parede do vaso sanguíneo, e o tratamento já não vai mais ser efetivo porque o dano é muito alto. Na maioria das vezes, o paciente evolui para óbito. Por isso, é muito importante que o médico faça perguntas ao paciente, para não pensar apenas nas doenças mais comuns.

Onde há mais risco de febre maculosa?
Locais em que temos um ambiente com um mato muito alto, sujo, que permite uma situação adequada para o carrapato procriar, junto ao contato com cavalos, capivaras, cães soltos, que são hospedeiros do parasita. Um carrapato fêmea pode dar origem a sete, oito, dez mil carrapatinhos, ou até mais, e eles têm uma capacidade incrível de sobreviver por meses sem se alimentar, são indivíduos muito resistentes.

Mas ela é uma zoonose que é mantida por animais, a infecção do homem é um acidente. Esse risco ocorre quando pessoas vivem perto desses locais ou visitam essas áreas silvestres, muitas vezes com seus cães, e retornam potencialmente infectadas pela picada do carrapato, ou com o animal transportando o parasita, que pode estar contaminado e criar um novo foco.

Em 2011, por exemplo, tivemos aquele desastre na região Serrana do Rio. Resgataram diversos cães e trouxeram para uma ONG na capital. Só que eles estavam com carrapatos infectados pela febre maculosa, praticamente 95% dos animais examinados estavam contaminados. O que aconteceu? Cinco funcionários da ONG foram picados pelos carrapatos e morreram pela doença.

O carrapato comum de cachorros em regiões urbanas pode infectar?
O Brasil tem uma diversidade de carrapatos muito grande. O grupo que tem mais importância é o Amblyomma, em que um deles é o carrapato-estrela. Ele é o principal vetor da febre maculosa porque não tem muita especificidade, então ele se alimenta de cavalos, capivaras, de humanos.

Mas o carrapatinho vermelhinho, que é comum infectar cachorros em regiões urbanas, não está associado à transmissão ao homem, porque ele é específico praticamente dos cães.

O risco é que, no momento que você traz um carrapato de área silvestre, e seu cachorro passa a ser parasitado pelos dois ao mesmo tempo, o vermelhinho pode ser infectado sim pela bactéria e ajudar na sua reprodução, mas ele dificilmente vai infectar o homem.

Os animais sofrem com febre maculosa?

Os animais, na grande maioria, estão muito bem adaptados à Rickettsia (bactéria). Mas existem algumas espécies de cães, por exemplo, em que houve registros de casos parecidos com os de humanos. Mas no geral a bactéria já circula entre os animais, então eles têm uma resistência maior. O homem é que não era para estar nesse ciclo.

O Brasil registra algumas poucas centenas de casos de febre maculosa ao ano, acredita haver subnotificação?

Todas as doenças que não são muito frequentes e que faltam conhecimento passam despercebidas. A quantidade de óbitos que não temos o agente etiológico identificado é impressionante. Se formos nos boletins epidemiológicos dos Ministérios da Saúde, vamos ver que mais ou menos 40% dos casos suspeitos de dengue são descartados. Qual a causa desses casos? Não sabemos.

Ainda assim, acredita que houve uma piora no cenário?

Eu tenho visto aqui no Rio áreas que antes não tinham relatos de febre maculosa agora tendo. Está havendo uma expansão dos carrapatos possivelmente pela mobilidade das pessoas, como aconteceu em 2011 com os cães da região Serrana. Nos Estados Unidos, por exemplo, que tem a doença de Lyme transmitida por carrapato, eles estão tendo aumento de casos e expansão da área geográfica. É um processo muito complexo quando temos um intermediário como o carrapato, que é tão resistente.

Como identificar se foi picado pelo carrapato?

As pessoas são diferentes. Existem pessoas que, ao serem picadas, vão ter uma alergia. Tem indivíduos que um único carrapato pode causar uma grande lesão. Mas algumas pessoas não vão ter reação. Em caso de dúvida, se o indivíduo frequentou uma área em que há a possibilidade de ter sido picado, é preciso estar atento aos sinais e procurar o atendimento médico imediatamente se tiver febre, dor de cabeça e manchas no corpo, mais comuns nas extremidades, como palma da mão, na sola do pé.

Como se proteger?

É importante observar o local para que está indo, se o mato é muito alto, se tem animais soltos, sem cuidados, que são indicadores da possibilidade de ter ali o carrapato infectado. Além disso, existe uma sazonalidade. A febre maculosa existe o ano inteiro, mas a partir de abril temos essas formas mais jovens do carrapato que agridem mais o homem.

Para o parasita transmitir, ele precisa ficar um tempo aderido ao corpo, cerca de quatro horas. Então é preciso evitar o contato com eles, utilizando roupas claras, o que auxilia na identificação do carrapato, vestir botas, calças e blusas com mangas compridas, evitar vegetações altas e utilizar repelentes carrapaticidas.

Esses repelentes foram desenvolvidos no Hemisfério Norte, onde a temperatura é mais amena. Então aqui, onde nós suamos mais, é preciso reaplicar o produto mais vezes.

Existe uma necessidade de vacinas?

Até já existe uma vacina, mas não é uma doença que tem perfil de imunização, porque não tem uma frequência elevada como observamos com a dengue, Covid-19, malária, entre outras.

Doenças que têm transmissão de pessoa para pessoa, casos muito elevados, são cenários em que o benefício de se vacinar é incontestável. Mas quando são diagnósticos menos comuns, e que têm tratamento e cura, como a febre maculosa, acaba não compensando o custo-benefício.

Além disso, o imunizante não tinha uma eficácia total, então poderia dar uma sensação de falsa proteção para uma doença altamente letal, e levar as pessoas a ignorarem os sintomas.

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