Fiocruz: "O ser humano importou o Aedes da África e fez das cidades um ambiente perfeito para ele"
Marcia Chame alerta que o perigo está em nossa relação conflituosa com a natureza, frisa que também transmitimos doenças aos animais e garante que parte da solução está em transformar o modo de vida urbano
Muito antes da pandemia de Covid-19 matar milhões de pessoas e paralisar o planeta, a bióloga e pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Marcia Chame e seu grupo já se dedicavam a identificar infecções associadas a animais, as zoonoses. Eles celebram este mês os 10 anos da criação do Centro de Informação em Saúde Silvestre e da plataforma e aplicativo de “vigilância cidadã” SISS-Geo, que deu resultados como a detecção precoce de áreas com risco de febre amarela.
Atenta a ameaças como a gripe aviária, a raiva e a dengue, Chame alerta que o perigo está em nossa relação conflituosa com a natureza, frisa que também transmitimos doenças aos animais e garante que parte da solução está em transformar nossas cidades.
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O conceito de saúde única, que mostra que o bem-estar humano não pode ser dissociado do dos animais, ganhou força no pós-pandemia. A senhora trabalha com isso há décadas, vê avanços?
Sim, ganhamos conhecimento que nos ajuda a evitar surtos de doenças como a febre amarela. A saúde única sempre foi um conceito óbvio para quem lida com a natureza. Mas para as pessoas das cidades, aprisionadas em suas bolhas urbanas, surge como novidade. Não é. É uma constatação de que somos parte da natureza, queiramos ou não.
O Brasil atravessa uma das maiores epidemias de dengue da história. Qual a relação com desequilíbrio ambiental?
As doenças de vetores como a dengue, a chicungunha e a zika estão em expansão não apenas porque o clima está favorável para os mosquitos. Mas porque somos a maior oferta de sangue do planeta. Não tem coisa melhor para um vetor do que se adaptar a nós.
Por quê?
O Aedes é um sucesso porque nosso sangue é o seu alimento. Temos milhões de pessoas vivendo em situação precária, vulneráveis ao ataque dele. E não são apenas mosquitos que se beneficiam.
O que mais?
Por exemplo, carrapatos que transmitem as bactérias causadoras da febre maculosa. Na verdade, somos perfeitos como alvo não apenas para os vetores, mas para os agentes causadores de doenças em si. O ser humano é tudo o que vírus, bactérias, parasitas e fungos precisam para viver e se multiplicar. Somos extremamente numerosos, estamos em toda parte, nos adaptamos a qualquer lugar, comemos de tudo. E os agentes infecciosos têm vida curta, não têm tempo a perder. Por isso, mesmo se adaptam depressa. E produzimos o lugar ideal para eles.
Qual?
Criamos condições que favorecem a adaptação de micro-organismos e seus transmissores. As cidades são grandes armadilhas luminosas para insetos. Nossas construções oferecem milhares de tipos de abrigo. Além de sermos nós mesmos e nossos bichos alimento. Cidades são ecossistemas.
E o que devemos fazer?
Temos que reorganizar nosso modo de vida e repensar as cidades. Aprender a viver melhor na Terra. Fará um bem maior para nós mesmos. Planejar melhor o uso do território, renaturalizar os rios, por exemplo. Não é impossível. A Alemanha libertou seus rios de canais e usou soluções baseadas na natureza para aumentar a absorção de água. Tudo isso para combater enchentes e seus efeitos. É uma missão que envolve uma infinidade de especialistas, gestores, políticos, toda a sociedade. Educação para isso é fundamental. Pequenas coisas fazem diferença.
Como o quê?
Precisamos de mais pássaros e flores nas cidades. Isso também é saúde. Nossos beija-flores, por exemplo, são predadores do Aedes, tudo está conectado. Os mosquitos nativos da Mata Atlântica também competem com ele e ajudam a controlá-lo. Mas destruímos as florestas. Por isso, precisamos mudar nossa forma de lidar com a natureza. O ser humano importou o Aedes da África para o Brasil, fez das cidades um ambiente perfeito para ele. Virou um bicho doméstico, que vive em nossas casas e se alimenta do nosso sangue. E não só com o Aedes, já passou da hora de repensarmos a relação.
Quais os objetivos da plataforma SISS-Geo?
O fundamental é registrar a emergência de zoonoses. Monitoramos 24 horas por dia, em qualquer situação. Temos 13 mil colaboradores. Qualquer pessoa pode colaborar, é uma forma pioneira de vigilância sanitária cidadã. Monitorar os animais silvestres, postar no app aquele bicho bacana que você viu no parque, por exemplo, ajuda a prevenir doenças. Algumas espécies são importantes indicadoras de que algo está errado.
Poderia dar exemplos?
Os macacos com a febre amarela. Estudá-los nos ajudou a prevenir surtos em humanos. Eles adoecem primeiro. Há outros casos. Uma raposa que esteja andando de forma trôpega no Nordeste pode ser sinal de raiva. Morcegos com tremores ou mortos também. Enviar fotos e relatos nos ajuda muito.
Por quê?
Conseguimos chegar a tempo, fazer busca ativa no campo e evitar que, caso exista mesmo uma doença, ela não possa se espalhar. É um trabalho complementar à vigilância municipal e estadual.
E como funciona?
É muito simples, só baixar o app gratuito. Ele funciona em zonas rurais ou naturais, offline. E os textos são fáceis, sem termos técnicos. Queremos saber se um animal teve sangramento, se tremia, coisas assim. O app pega a localização exata por satélite e nos envia os dados, assim que tiver sinal. O app é muito simples de usar. É um trabalho de vigilância cidadã.
E quem recebe os dados?
O sistema dispara alertas automáticos para o Ministério da Saúde. E o alerta que emite traz a foto do animal, o local exato onde foi encontrado com link do Google Map, além de um relatório
E quem investiga?
É o município. Se este não tiver condições o MS pode ajudar. As informações permitem aos profissionais de saúde saber que tipo de equipe levar, o que levar e para onde. Reduz os custos de operação e melhora a qualidade do resultado. Esse alerta é só parte do trabalho.
E qual o desdobramento?
Um sistema para identificação de possíveis surtos. Isso é feito com a uma modelagem sofisticada e foi testado com sucesso contra a febre amarela. Hoje sabemos identificar a vulnerabilidade ecológica de uma área, que lugar e condições favorecem a emergência de doenças. É um modelo que considera 32 mil camadas socioambientais.
E os resultados?
Conseguimos mapear corredores de transmissão de febre amarela com meses de antecedência, ir nesses lugares, oferecer a vacina a quem não está vacinado e, assim, evitar doença e morte. Temos um mapeamento de todo o Brasil para a febre amarela. E hoje sabemos que existem ambientes no Nordeste favoráveis ao surgimento da doença, da febre amarela silvestre, da qual até agora essa região tem se mantido livre.
E para as outras doenças?
O sistema pode ser usado para qualquer doença infecciosa associada a animais.
Vocês trabalham só com a fauna silvestre?
Sim. Mas agora aceitamos este ano o desafio do MS de incluir também cães e gatos urbanos. Isso é muito importante. Há doenças que se disseminam entre eles, como a leishmaniose (cães) e a esporotricose (terrível infecção da pele em gatos), essa última tem causado muito preocupação porque está se espalhando. E muitas vezes eles são a ponte entre seres humanos e doenças silvestres. É o caso de raposas e cães.
O que acontece?
As raposas têm um vírus específico da raiva e ele pode ser transmitido para os cães. Se há identificação de raposas com sinais de raiva num determinado lugar, precisamos garantir que todos os cães ali estarão vacinados contra a raiva. É um trabalho que protege as raposas, os cães e as pessoas. Monitoramos qualquer zoonose, mas algumas estão sempre no radar.
Quais?
Além da febre amarela, a gripe aviária e a febre do Nilo Ocidental. Essa última é um mistério, ninguém sabe muito bem qual seu caminho no Brasil, quando entra.
E trabalham só com doenças?
Por meio da vigilância com foco em saúde, muitas vezes descobrimos outras questões. Recentemente tivemos o caso de 32 tartarugas marinhas mortas em apenas 12 dias no Nordeste. Após investigação, se descobriu que não era doença, mas crime ambiental. Barcos ilegais de pesca estavam atuando na zona de corais e matando as tartarugas. E onde tem bicho saudável, o registro de animais silvestres também nos interessa muito.
O que revela esse tipo de informação?
Permite avaliar a saúde de uma floresta e saber o que é preciso para ter um ambiente saudável, com sua fauna. Não queremos só as fotos dos animais, mas também de pegadas, refúgios. Temos uma das maiores bases de dados sobre macacos brasileiros. Estamos acompanhando a recuperação deles em áreas afetadas pela febre amarela, por exemplo.
Quais os seus planos para este ano?
Um dos nossos grandes sonhos e desafios é cobrir a Amazônia. Ela é um vazio de informação. Também queremos expandir os trabalhos no Pantanal e em todo o Cerrado do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul.