Opinião

Fome não é uma questão ideológica

Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto uma foto de um gol
Em vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém
(João Bosco)

Terminávamos, eu e minha esposa, a caminhada diária pela quadra aqui em Brasília.

Ao longe vimos um desses carrinhos velhos de supermercado, atulhado de coisas. Papelão, garrafa pet cortada, cobertor rasgado, latinhas amassadas, panela suja com resto de comida... 

Estacionado no meio da calçada, quase impedia a passagem dos pedestres apressados em seu dia a dia de trabalho, lazer, escola etc.

Deitado ao lado da passagem, sobre as folhas ressecadas caídas do inverno do cerrado, maltrapilho, sujo, quase inerte, estava um senhor em sono profundo.

Ao passarmos pelo carrinho, vimos que dentro havia um papelão com uma inscrição:

- ME AJUDE, PRECISO DE UMA CESTA BÁSICA.

Aquele corpo em estado basal tinha os traços de uma pessoa idosa, mas não uma pessoa velha. As adversidades da vida aceleraram o seu relógio biológico. Não saberia chutar uma idade.

Foi um soco na boca do estômago, sem trocadilho. 

Naquela manhã, cedinho, como ação social de cidadão, colaborei para entidades que ajudam na causa do combate à pobreza. Um compromisso mensal.

Sentado à poltrona, me sentia confortável em poder ajudar para a diminuição da fome, da pobreza, endemias que tanto afligem a população mais humilde e carente de nosso país.

Casualmente, na semana anterior, assisti ao programa Conversa com Bial, no qual foram convidados o doutor Dráuzio Varela e Daniel Souza, filho do Betinho, lendário fundador da ONG Ação da Cidadania.

Como sempre conversa interessante, séria, bem conduzida, mas essa tinha um ar de urgência pairando sobre os interlocutores. Os sorrisos contidos eram de tristeza.

Ao final foi apresentado o endereço eletrônico de um site () para a colaboração financeira. Impactado, fiz a minha parte.

Voltemos ao corpo estendido no chão. 

Após a caminhada, minha esposa relatou que há algumas semanas, como de hábito, numa doação semanal que fazemos aleatoriamente a pessoas necessitadas, ocorreu um fato deprimente.

No estacionamento de um supermercado ofereceu uma cesta básica a uma senhora indigente acometida de um problema ortopédico.

Ela sorriu com ternura e disse-lhe:

- Filha, Deus há de prover muito mais para você e sua família. Não consigo carregar esse tesouro. Seria melhor a senhora doar a alguém. Eu ficaria feliz de ver outra pessoa feliz. Eu preciso agora é de dinheiro.

Mais um soco na boca do estômago.

Como na música, o corpo está estendido no chão e nós continuamos no bar a beber e a dançar.

Estou convencido de que devemos levantarmo-nos da poltrona confortável. Obrigar as autoridades e não autoridades a encarar o problema sem arrodeios.

Melhor momento não há. Estamos em campanha eleitoral na qual os candidatos buscam convencer o eleitor de sua capacidade de resolver problemas. E fome não me parece estar, para alguns, entre as prioridades.

A fome insensata, visível nas esquinas, embaixo das pontes, impossível de ser esquecida, que delimita a dignidade humana a um simples prato de comida.

Fome não é uma questão ideológica. 

Brasília, sede da capital da República, não pode aceitar impassível essas fotografias que se repetem a cada dia, a cada lugar. 

Daqui deve sair um pacto contra a fome que se espraie por todo Brasil. São trinta e três milhões de famélicos! 

E se não for pela ação que a política deve gerar, que seja pela ação que a sociedade precisa impor e liderar. 

Retomando Betinho, “Quem tem fome tem pressa”. O lema cunhado na década de 1990, na campanha da AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME, A MISÉRIA E PELA VIDA, continua atual.

A fome se torna dolorosamente banal se a tratarmos como causa. Ela é efeito. Efeito da incapacidade de berrarmos contra a marcha da insensatez.

Paz e bem!



*General de Divisão da Reserva


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