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EUA

Funcionários da Usaid são instruídos a triturar ou queimar registros confidenciais e pessoais

Pelo menos dois grupos entraram com ações judiciais para impedir a destruição dos documentos; ambos alegam que a agência não cumpriu os requisitos de preservação

Vista do logotipo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) Vista do logotipo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)  - Foto: Orlando Sierra / AFP

Funcionários da Usaid, a principal agência de ajuda dos Estados Unidos, foram instruídos a destruir documentos confidenciais e registros pessoais, de acordo com um memorando de uma autoridade sênior.

A ordem gerou novos desafios legais e preocupação por parte do sindicato que representa os trabalhadores da agência no exterior. Desde que Donald Trump assumiu o mandato, em janeiro, sua administração já ordenou a demissão de milhares de funcionários do órgão, colocou alguns em licença e pediu que outros trabalhassem de casa, deixando a sede da organização praticamente vazia.

Em um e-mail, Erica Carr, a secretária-executiva interina da Usaid, instruiu os funcionários da agência a triturar “o máximo de documentos” possível, reservando “sacos de queima para quando o triturador não estiver disponível ou precisar de uma pausa”.

Normalmente, segundo a BBC, os documentos colocados em sacos de incineração para descarte são lacrados e depois levados até um local seguro para a queima.

A mensagem pedia ainda que a equipe não enchesse demais esses sacos e os rotulasse com as palavras “secreto” e “escritório independente da Usaid” usando marcadores permanentes.

Não está claro se Carr ou outro funcionário da Usaid teve permissão do Arquivo Nacional dos Estados Unidos para destruir os documentos.

A Lei de Registros Federais de 1950 exige que os funcionários do governo americano solicitem aprovação do Arquivo Nacional antes de destruir alguns registros oficiais.

Os documentos que estão sendo destruídos podem ser relevantes para vários processos judiciais movidos contra o governo Trump e a agência de ajuda devido às demissões em massa e à realocação repentina de funcionários, além do desmantelamento acelerado da agência.

Na noite de terça-feira, após o e-mail ter sido enviado, pelo menos dois grupos entraram com ações judiciais para impedir a destruição de mais documentos do órgão. Ambos alegam que a agência não estava cumprindo os requisitos de preservação de registros.

No mesmo dia, a Associação Americana do Serviço Estrangeiro (AFSA, na sigla em inglês), sindicato que representa diplomatas de carreira e um dos autores da ação, disse em nota que estava “alarmada com relatos de que a Usaid ordenou a destruição de documentos confidenciais sensíveis que podem ser relevantes para litígios em andamento”.

“A lei federal é clara: a preservação de registros governamentais é essencial para a transparência, a responsabilidade e a integridade do processo legal. Exigimos total conformidade com as leis federais de preservação de registros para garantir a prestação de contas e proteger os direitos dos funcionários da Usaid”, dizia o documento.

O sindicato também alertou que trabalhadores envolvidos na destruição indevida de documentos poderiam enfrentar consequências legais.

Controle de registros
A agência de ajuda emprega cerca de 2 mil diplomatas de carreira, conhecidos como oficiais do Serviço Estrangeiro, que são representados pelo sindicato.

Normalmente, diplomatas só destroem grandes quantidades de documentos quando uma embaixada ou outro posto está prestes a ser invadido por uma força hostil.

Alguns diplomatas que receberam o e-mail de Carr na noite de segunda-feira ligaram para representantes sindicais, preocupados com o pedido repentino.

A Lei de Registros Federais determina que “as agências devem seguir cronogramas de retenção aprovados pelo Arquivo Nacional” e abrange também todos os documentos eletrônicos.

Os documentos impressos devem ser salvos em formato digital antes de serem destruídos, e a lei exige que as agências “gerenciem registros eletrônicos de forma eficaz, garantindo acessibilidade e segurança”.

Ainda não se sabe se os documentos da Usaid foram digitalizados antes da destruição.

O e-mail de Carr foi enviado na segunda-feira, no mesmo dia em que o secretário de Estado americano, Marco Rubio, cancelou oficialmente 83% dos contratos da Usaid e transferiu o restante para a jurisdição do Departamento de Estado.

A medida elimina a agência como uma entidade independente – e faz parte dos esforços mais amplos do governo Trump para reduzir os gastos com a ajuda externa do país.

— Não há razão para a Usaid estar destruindo registros — disse Lauren Harper, da Freedom of the Press Foundation. — Como agência sucessora da Usaid, o Departamento de Estado deveria assumir o controle dos registros da organização.

Rubio assumiu o controle da Usaid no mês passado e anunciou que Pete Marocco, nome polêmico no Departamento de Estado, supervisionaria as operações diárias. Marocco tem trabalhado com jovens funcionários de uma força-tarefa liderada por Elon Musk, bilionário e assessor de Trump, para interromper a distribuição de fundos de ajuda externa, cortar contratos e demitir ou afastar milhares de funcionários.

Em uma tensa reunião de Gabinete na última quinta-feira, Rubio expressou sua frustração com Musk pela extinção da agência de ajuda. Ainda assim, na segunda-feira ele comunicou a decisão do governo do presidente Donald Trump de cancelar mais da metade dos programas da agência. Ele também afirmou que a decisão foi tomada após mais de um mês de revisão dos programas do órgão.

“Os 5,2 mil contratos que agora foram cancelados gastaram dezenas de bilhões de dólares de maneiras que não serviam – e, em alguns casos, até prejudicavam – os interesses nacionais centrais dos Estados Unidos”, escreveu Rubio sobre a agência, embora o valor destinado a ela seja menos de 1% do orçamento federal anual.

Consequências fatais
Grupos humanitários afirmam que até mesmo programas de emergência foram encerrados, apesar de Rubio e outros funcionários do governo terem prometido preservá-los, de acordo com a agência americana Associated Press.

Entre eles estavam iniciativas de nutrição para crianças famintas e fornecimento de água potável para campos de refugiados no Sudão, que abrigam famílias deslocadas pela guerra.

Como consequência, projetos voltados para o controle de epidemias, prevenção da fome, treinamento profissional e fortalecimento da democracia também foram interrompidos. Processos judiciais alegam que o fechamento abrupto da agência deixou grupos de assistência e empresas que tinham contratos com a Usaid sem receber bilhões de dólares – muitas vezes por trabalhos já finalizados.

Na segunda-feira, um juiz federal ordenou que o governo Trump retomasse os pagamentos de ajuda para projetos já concluídos.

O juiz destacou que o Congresso havia aprovado os fundos de ajuda externa e que o governo Trump não tinha o direito de “reter” o dinheiro.

A Usaid foi criada em 1961, durante o governo do presidente John F. Kennedy (1961-1963), e é o braço humanitário do governo americano. A agência distribui bilhões de dólares anualmente ao redor do mundo para combater a pobreza, tratar doenças e responder a fomes e desastres naturais.

Agora, porém, Musk acusa falsamente a organização de ser um “ninho de víboras marxistas radicalmente de esquerda que odeiam os Estados Unidos”, rotulando a agência como “criminosa”.

Embora os efeitos de longo prazo ainda sejam incertos, especialistas alertam que a paralisação da ajuda tem potencial para gerar consequências fatais — e colocar em risco a influência americana.

Até então, os EUA eram o maior doador mundial de ajuda externa, investindo cerca de US$ 68 bilhões (R$ 393 bilhões) em 2023. Agora, analistas veem a abertura de espaço para que China e outros adversários americanos se posicionem como benfeitores mais confiáveis.

“A liderança global dos EUA é definida por sua capacidade de oferecer intervenções salvadoras e apoio aos necessitados”, disse Elisha Dunn-Georgiou, presidente e CEO do Global Health Council, em comunicado.

“Suspender esses programas cria um vácuo que não apenas prejudica populações vulneráveis, mas permite que atores adversários preencham esse espaço, desestabilizando regiões e minando a influência dos EUA.”

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