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Gafe com homenagem a nazista no Canadá traz à tona passado complexo da Ucrânia na Segunda Guerra

Yaroslav Hunka integrou uma divisão do Exército nazista formada por voluntários ucranianos, mas questão tem laços com o nacionalismo local e com a formação territorial do país

Primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em discurso em TorontoPrimeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em discurso em Toronto - Foto: Geoff Robins / AFP

Na semana passada, uma sessão que deveria ser marcada pela presença do ucraniano, Volodymyr Zelensky, no Parlamento canadense tornou-se uma dor de cabeça para o premier Justin Trudeau. Além do presidente da Ucrânia, que havia discursado na ONU dias antes, estava no plenário um senhor de 98 anos, Yaroslav Hunka, apresentado como um veterano da Segunda Guerra Mundial “que lutou pela independência da Ucrânia contra os russos”.

Não tardou até que historiadores apontassem para um fato: Hunka, que mora no Canadá desde 1954, fez parte de uma das unidades do Exército nazista no Leste Europeu, a 14.ª Divisão de Granadeiros da Waffen SS, a “Galícia”, formada por voluntários ucranianos em 1943. Além dos pedidos de desculpas de Trudeau e lideranças políticas canadenses, o presidente do Parlamento, Anthony Rota, deixou o posto na quarta-feira “com muita dor no coração”.

A propaganda russa hoje associa Kiev a um ideário nazista, mas a relação ucraniana com a Segunda Guerra Mundial é, acima de tudo, complexa, e a história de Hunka é apenas um exemplo disso.

Em conversa com o Globo, o professor de História da USP, Angelo Segrillo, um dos maiores especialistas em União Soviética no Brasil, destaca o fato de a Ucrânia ser um Estado multinacional que, no início da guerra, teve uma expansão territorial, agregando partes da Polônia— áreas que nunca fizeram parte do Império Russo e onde o domínio soviético era considerado mais perigoso do que as forças de Hitler.

— Na parte ocidental havia muitos anticomunistas. Na parte que já era da União Soviética, esses anticomunistas também existiam, mas eram minoria: a maioria apoiava ou se conformava com o sistema — diz Segrillo. — E essa parte ocidental começa a se tornar pró-Alemanha antes mesmo da invasão nazista. E os anticomunistas eram, basicamente, contra a União Soviética, e aí entramos naquela ideia de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

Nesse momento, nacionalistas ucranianos, que defendiam a criação de um Estado independente, faziam acenos aos nazistas, e líderes do maior dos grupos desse meio, a Organização de Nacionalistas Ucranianos, chegaram a receber tratamento privilegiado depois da invasão alemã da Polônia, em 1939.

— Alguns viram a oportunidade de, ao colaborar com o Exército alemão, conseguirem viabilizar uma Ucrânia mais independente ou autônoma, algo que não seria possível com a União Soviética — aponta Segrillo, notando que a manifestação, por muitos desses líderes nacionalistas, de visões políticas hoje consideradas de extrema direita era algo relativamente comum na Europa nos anos 1930.

Herói na Ucrânia
Entre eles estava Stepan Bandera, o mais conhecido dos nacionalistas ucranianos, que até hoje é considerado um herói na Ucrânia. Bandera defendia a radicalização da luta pela criação do Estado independente, o que incluía, claro, o chamado às armas. A mobilização começou antes da invasão da Ucrânia, em 1941, e com a chegada das forças alemãs, as milícias participaram ativamente em combates… e massacres.

Segundo o Museu do Holocausto dos Estados Unidos, os nacionalistas mataram cerca de 4 mil judeus em Lviv em 1941. Também há relatos da participação das milícias em outros episódios do Holocausto na Ucrânia, com estimativas apontando que até 1,5 milhão de judeus ucranianos foram mortos por nazistas e aliados entre 1941 e 1945.

Mas o apoio no campo de batalha não se traduziu em apoio à causa política. Em junho de 1941, após proclamar um Estado independente em Lviv, Bandera foi quase imediatamente preso e assim permaneceu até 1944, incluindo uma passagem por um campo de concentração.

— Foi algo meio fora da realidade. Ao mesmo tempo em que fizeram essa declaração de independência, falaram que queriam colaborar com os alemães, só que os alemães, nessa etapa da guerra, não queriam essa divisão em suas linhas — disse Segrillo. — Hitler não queria uma Ucrânia independente: queria usar aquele território como um espaço vital de fornecimento de matéria-prima para a Alemanha, ele queria uma colônia.

Hitler, que considerava os povos eslavos “sub-humanos”, começou a mudar de ideia sobre a presença deles em suas forças em 1943, depois da derrota na Batalha de Stalingrado, em fevereiro daquele ano, e dos sinais de problemas no flanco Oriental. Foi quando surgiram os batalhões de voluntários, como os granadeiros da Waffen SS, que tinham Yaroslav Hunka entre seus combatentes.

— Ele participou de uma unidade um pouco estranha, porque era uma divisão alemã, mas que também diziam que seria uma divisão autônoma da Ucrânia no Estado independente — afirma Segrillo.

Muitos dos voluntários que se juntaram às forças alemãs, como afirmou o próprio Hunka a um site militar ucraniano em 2011, diziam lutar pela independência do país e contra “os estrelas vermelhas”, referência às forças soviéticas.

Os voluntários se renderam pouco antes do fim da guerra, e as milícias nacionalistas, embora tenham sido praticamente dizimadas após a rendição alemã — estima-se que até 150 mil integrantes desses grupos e seus parentes tenham sido executados por Moscou —, mantiveram-se relativamente ativas nas décadas seguintes e chegaram a contar com apoio ocidental, como dos EUA.

Propaganda x realidade
Apesar da propaganda russa tentar associar esse passado de colaboração com os nazistas à identidade ucraniana, vale ressaltar que 7 milhões de ucranianos combateram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra e mais de um milhão deles morreu nos combates. Duas cidades da Ucrânia — Kiev e Sebastopol (na Crimeia, hoje ocupada pela Rússia) — estão na lista de “heróis” da União Soviética, e seus nomes estampam monumentos ao redor da própria Rússia, incluindo do lado de fora dos muros do Kremlin, em Moscou.

Mesmo no atual contexto político, a extrema direita na Ucrânia, embora barulhenta e responsável por atos de violência nos últimos anos, não necessariamente tem apoio amplo na sociedade. Nas eleições de 2019, a coalizão formada por siglas como o Svoboda e o Setor Direito não superou a cláusula de barreira de 5%, e as visões anti-Rússia de boa parte dos ucranianos, especialmente depois da invasão, nem sempre convergem para o extremismo.

— [Os extremistas] são as chamadas minorias vocais, que assim o foram em 2014 [na Euromaidan], e também na Segunda Guerra Mundial. Eles lutaram contra a ocupação soviética, como eles assim a chamam, e em 2014 foram muito combativos naquela revolução contra os russos — conclui Segrillo.

Por outro lado, o uso recorrente de simbologias que remetem ao nazismo no campo de batalha, como no Batalhão Azov (ligado à extrema direita), tem criado uma saia justa para os aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Sem contar a presença de nacionalistas que colaboraram com os nazistas, como o próprio Bandera, na lista de heróis da Ucrânia, algo que é frequentemente citado pela Rússia como um exemplo de que a simpatia ao nazismo seria prevalente no país.

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