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guerra no oriente médio

Gaza: "Normalizamos o horror", diz funcionário da ONU após ataque a complexo escolar

Situação humanitária em partes do enclave é descrita pelo diretor de planejamento da UNRWA, Sam Rose, como "fora de controle", que alerta para "acerto de contas psicológico" causado pelo conflito

Menino palestino perto de uma mancha de sangue em escola da ONU atingida durante um bombardeio israelense em Nuseirat, na região central da Faixa de Gaza, em 6 de junho de 2024.Menino palestino perto de uma mancha de sangue em escola da ONU atingida durante um bombardeio israelense em Nuseirat, na região central da Faixa de Gaza, em 6 de junho de 2024. - Foto: Bashar Taleb/AFP

Parece ser questão de tempo, ou até mesmo dias, para que o ataque de Israel a um complexo escolar da ONU que deixou dezenas de mortos seja substituído por outro, observou o diretor de planejamento da agência para Refugiados Palestinos no Oriente Médio (UNRWA), Sam Rose.

Na guerra entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza, que completa oito meses nesta sexta-feira sob intensos bombardeios israelenses, a ocorrência de casos similares "repetidas vezes" amorteceu o impacto e atenuou o abalo que mortes de civis deveriam provocar. Para Rose, normalizamos o terror".

"Em conflitos anteriores, incidentes únicos como este causariam choque e indignação e seriam lembrados para sempre. Embora pareça que neste conflito este será substituído por outro dentro de alguns dias, a menos que tudo chegue ao fim. Então, quase se torna comum e mundano que essas coisas estejam acontecendo" explicou o diretor em entrevista ao The Guardian.

Rose tinha acabado de retornar para Londres, no Reino Unido, após cinco semanas em Gaza, quando o ataque ocorreu no centro da Faixa de Gaza, em Nuseirat. Segundo o Ministério de Saúde de Gaza, território controlado pelo Hamas desde 2007, 40 pessoas morreram, incluindo 14 crianças e nove mulheres. Todos eram civis. A escola atingida abrigava "cerca de seis mil pessoas", onde vivam "em condições precárias e de superlotação". O diretor disse que não foram avisados sobre o ataque.

"As pessoas estavam se abrigando no pátio da escola nas condições mais desesperadoras e não houve nenhum aviso de que essa ação estava ocorrendo. Isso aconteceu no meio da noite, por volta das 2h [da madrugada, horário local" disse, descrevendo ao jornal britânico um cenário que, na sua visão, tornava "inevitável" um caso como o de quinta.

O diretor apelou para o respeito pelas partes dos conflitos às regras de guerra, entre elas, "a inviolabilidade das nossas instalações", lembrando sobre "princípios de distinção e de proporcionalidade". No mesmo dia do ataque, a UNRWA afirmou que ao menos 450 pessoas foram mortas dentro de seus edifícios e mais de 180 instalações sofreram danos desde o início do conflito. Israel, ao explicar o ataque que descreveu como "preciso", disse que entre 20 e 30 combatentes afiliados ao Hamas e à Jihad Islâmica Palestina haviam se escondido na escola.

Na quinta, o porta-voz militar israelense Peter Lerner disse a repórteres que os militantes "se sentem relativamente seguros" nesses locais porque entenderiam que os militares israelenses são "cautelosos e cuidadosos" perto de instalações da ONU. As forças israelenses afirmaram ter matado pelo menos 15 combatentes no ataque, incluindo dez membros do Hamas. O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, pediu uma investigação de "forma independente", e a Casa Branca, pouco depois do ataque, disse esperar que Israel fosse "totalmente transparente" ao divulgar as informações.

"Acerto de contas psicológico"
Um dia depois do caso de quinta, o enclave palestino voltou a ser alvo de bombardeios das forças israelenses — o que parece ter virado rotina no últimos oito meses de conflito. Os ataques desta sexta ocorreram em vários pontos do enclave, incluindo um campo de refugiados. Em Deir al-Balah, cidade próxima ao local do ataque ao complexo escolar, seis pessoas morreram e seis ficaram feridas em um ataque com mísseis contra a casa de uma família do campo de refugiados de al-Maghazi, informou uma fonte médica. O exército também atacou o campo al-Bureij, também no centro da Faixa.

Na Cidade de Gaza, no norte do enclave, duas pessoas morreram e várias ficaram feridas em um ataque com mísseis israelenses contra uma residência, segundo hospitais da região. A região, que já havia sido conquistada por Israel, voltou a ser local de embate entre militares e combatentes, onde acredita-se que células do Hamas estejam se reagrupando. Um correspondente da AFP relatou que navios israelenses dispararam projéteis nesta sexta contra casas no porto de Sheikh Ajlin, ao oeste da Cidade de Gaza.

Fontes locais afirmam que a cidade de al-Qarara, perto de Khan Younis, e Rafah, também foram atacadas pelo Exército israelense. As operações militares em na cidade de Rafah, no extremo sul do território, forçaram a fuga de um milhão de palestinos, segundo a ONU. Rose afirmou que esse deslocamento teve "consequências humanitárias bastante dramáticas", descrevendo a situação de algumas partes do enclave como "em grande parte fora de controle".

Ao todo, de acordo com o Fundo de População da ONU (UNFPA), estima-se que cerca de 1,7 milhões de pessoas (quase 80% da população de Gaza) estejam deslocadas internamente. Rose descreveu o cenário dos últimas semanas:

"Aqueles que chegaram a Rafah como refugiados foram os primeiros a sair, seguidos pelas famílias que viveram na cidade durante toda a vida. Basicamente, víamos mulheres e crianças sentadas na beira da estrada com seus pertences bem arrumados ao lado, colchões, sacos de farinha, galões, livros, roupas. Os rapazes tinham ido procurar um lote de terra, conexões ou qualquer outra coisa. E depois voltariam mais tarde. Eles alugavam um caminhão e traziam o resto da família, mas vimos muitas famílias, principalmente mulheres e crianças, sentadas à beira da estrada esperando por ajuda."

Em sua última visita ao enclave, o diretor contou que ficou impressionado "com o grande número de pessoas com muletas e cadeiras de rodas, com membros amputados, com feridas". Segundo o Ministério da Saúde do eclave, citado pelo Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), mais de 83 mil pessoas ficaram feridas desde o início do conflito, enquanto, até janeiro, mais de dez crianças perderam uma ou até duas pernas por dia. Buscar ajuda também é difícil: 20 hospitais estão foram de serviço, e 16 funcionam parcialmente.

Isso sem contar a crise na educação, já que as escolas, quando não destruídas ou danificadas, tornaram-se locais de acolhimento para refugiados e deslocados do conflito, atraídos por seus painéis solares (e consequente acesso à energia) e usinas de dessalinização, segundo o Guardian. Das 300 escolas da UNRWA no enclave, o jornal britânico afirmou que nenhuma oferece aulas e atividades de ensino desde 7 de outubro, quando teve início a guerra.

A passagem de fronteira com o Egito, essencial para a entrada de ajuda internacional no território cercado, permanece fechada, e Rose disse que a agência tem "tentando entregar ajuda em uma zona de guerra". Cerca de 31% das crianças menores de dois anos de idade no norte do enclave sofrem de desnutrição, ao passo que mais da metade da população do enclave (1,1 milhão) enfrenta níveis catastróficos de insegurança alimentar.

Há também uma crise na infraestrutura: relatório da City University of New York, citado pela BBC, aponta que entre 50% e 61% dos edifícios foram danificados ou destruídos em Gaza. Outro documento divulgado pela rede também concluiu que mais da metade (53%) das 603 infraestruturas de água e saneamento pareciam ter sido danificadas ou destruídas desde o início da ofensiva israelense.

— Haverá um acerto de contas psicológico em algum momento — salientou o diretor, acrescentando: — A exigência de que as pessoas se ajustem repetidamente à realidade da vida em Gaza é algo que ninguém deveria ter que suportar.

A guerra na Faixa de Gaza foi desencadeada pelo ataque terrorista do Hamas contra o sul do território israelense em 7 de outubro, quando 1,2 mil pessoas foram assassinadas, civis em sua maioria, e mais de 240 foram levadas como reféns para Gaza. Após uma trégua em novembro, que permitiu a libertação de várias vítimas, 120 continuam em cativeiro no enclave, das quais 41 estariam mortas, segundo o Exército israelense. Em resposta, Israel iniciou uma ofensiva que deixou mais de 36,6 mil mortos, a maioria mulheres e menores de idade.

No campo diplomático, Biden apresentou em 31 de maio um plano, que segundo ele foi proposto por Israel, que prevê, em uma primeira fase, um cessar-fogo de seis semanas acompanhado por uma retirada israelense das áreas densamente habitadas de Gaza, a libertação de alguns reféns e de prisioneiros palestinos. O Hamas apresentará a resposta à proposta "nos próximos dias", afirmou na quinta-feira uma fonte citada pela emissora al-Qahera News, canal próximo ao serviço de inteligência egípcio. (Com AFP)

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