Gisèle Pelicot, de sobrevivente de estupros em série a ícone feminista
A vítima era uma avó cujo companheiro de vida durante meio século admitiu que a drogou entre 2011 e 2020 para deixá-la inconsciente e estuprá-la
Os estupros cometidos por desconhecidos e planejados por seu marido poderiam tê-la destruído, mas a francesa Gisèle Pelicot decidiu enfrentar seus agressores nos tribunais para exigir que "a vergonha mude de lado" e virou um ícone feminista mundial.
"Penso nas vítimas não reconhecidas, cujas histórias costumam permanecer na sombra. Quero que vocês saibam que compartilhamos do mesmo combate", disse a mulher de 72 anos nesta quinta-feira (19), depois de a justiça condenar seus estupradores.
Em setembro, quando o julgamento contra seu agora ex-marido e outros 50 réus começou em Avignon, sul da França, os jornalistas viram uma mulher de cabelo curto, ruiva, escondida atrás dos óculos escuros.
Leia também
• Luigi Mangione: suspeito de matar CEO é transferido para cumprir pena em Nova York
• Centenas se manifestam na Síria por democracia e direito das mulheres
• Mulher de 79 anos amputa a perna após complicação de arranhão feito por gato
A vítima era uma avó cujo companheiro de vida durante meio século admitiu que a drogou entre 2011 e 2020 para deixá-la inconsciente e estuprá-la, juntamente com dezenas de homens desconhecidos que ele contactava pela internet.
Mas Gisèle renunciou ao direito de anonimato e exigiu uma autorização de acesso do público ao julgamento para aumentar a conscientização sobre a submissão química, o uso de drogas para cometer agressões sexuais.
A mulher conquistou o coração da França e no exterior, após afirmar que seus agressores, e não ela, eram aqueles que deveriam sentir vergonha.
"Eu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: 'Se a senhora Pelicot fez isso, nós podemos fazer'", declarou em outubro. "Não quero que (as vítimas) sintam mais vergonha, e sim os agressores", acrescentou.
O julgamento foi acompanhado por manifestações de apoio na França, onde várias pessoas começaram a aplaudi-la e a oferecer flores quando ela chegava ao tribunal. Seu rosto estampou muros ao redor do mundo.
E, aos poucos, Gisèle Pelicot tirou os óculos escuros, como ocorreu nesta quinta-feira, quando a justiça condenou os 51 acusados a penas entre 3 anos, dois com direito a sursis, e 20 anos de prisão.
"Heroína feminista"
Para o jornal The New York Times, Gisèle se tornou uma "heroína feminista", "o novo ícone da França", segundo o alemão Die Zeit. A BBC a incluiu na lista das cem personalidades femininas de 2024.
Esta "cidadã comum (...) tem sido um exemplo de coragem e dignidade para as mulheres do Chile e de todo o mundo", ressaltou, em novembro, a presidente do Parlamento chileno, Karol Cariola.
Em agosto, Gisèle se divorciou de seu marido e algoz, Dominique Pelicot. O homem de 72 anos admitiu as agressões sexuais, que documentou meticulosamente durante anos com fotos e vídeo, e foi condenado a 20 anos de prisão.
Sua ex-mulher se mudou para longe de Mazan, a cidade no sul da França onde a maioria dos estupros ocorreu e onde foi tratada como "um pedaço de carne", uma "boneca de pano" em sua casa, em suas próprias palavras.
Ela agora usa seu sobrenome de solteira, mas durante o julgamento pediu à imprensa que utilizasse o sobrenome de casada, que passou a alguns de seus sete netos.
As audiências não foram fáceis. Em meados de setembro, Gisèle abandonou sua reserva habitual para expressar a raiva pela humilhação que sentiu quando vários advogados insinuaram uma possível cumplicidade. "Um estupro é um estupro", respondeu.
Durante o julgamento, ela pediu que a sociedade "machista e patriarcal" mude sua atitude em relação ao estupro e falou sobre sua indignação por nenhum de seus agressores ter alertado a polícia. Alguns a estupraram até seis vezes.
Lapsos de memória
Alguns réus se defenderam alegando que acreditavam participar de uma fantasia de um casal libertino, pois tinham o consentimento do marido, um exemplo de sua "covardia", na opinião da vítima.
Outros admitiram os estupros. Mas até 20 suspeitos seguem em liberdade porque os investigadores não conseguiram identificá-los antes do mega-julgamento.
Gisèle, filha de um militar, nasceu em Villingen, no sudoeste da Alemanha, em 7 de dezembro de 1952, e se mudou para a França com cinco anos. Quando tinha nove, sua mãe morreu de câncer com apenas 35 anos.
Quando seu irmão, Michel, faleceu vítima de um ataque cardíaco em 1971, aos 43 anos, ela ainda não havia completado 20. No mesmo ano, conheceu Dominique Pelicot, seu futuro marido e agressor sexual.
Seu sonho era ser cabeleireira, mas ela fez um curso de datilografia. Após alguns anos de trabalhos temporários, Gisèle desenvolveu toda a sua carreira no grupo elétrico francês EDF, onde terminou como encarregada de um departamento de logística para centrais nucleares.
Em casa, cuidou de seus três filhos e depois dos sete netos. Quando se aposentou, ela gostava de caminhar e cantar em um coral local.
Apenas quando a polícia flagrou seu ex-marido filmando por baixo das saias de uma mulher em um shopping em 2020, ela descobriu a razão de seus preocupantes lapsos de memória.
Após a condenação, Gisèle olha para a frente. "Agora, confio em nossa capacidade para alcançar coletivamente um futuro em que todos, mulheres e homens, possam viver em harmonia, com respeito e compreensão mútuos".