Guerra em Gaza colapsa sistema de saneamento de água do enclave e põe pressão sobre hospitais
Análise mostra que centenas de instalações hídricas foram destruídas ou danificadas desde o início do conflito, enquanto OMS e ONGs denunciam impacto da incursão israelense à cidade no sul
Paralelo ao avanço do Exército israelense na Faixa de Gaza, devido à sua guerra contra o Hamas, está a acentuação da crise humanitária. Uma análise divulgada pela BBC, nesta quinta-feira (9), mostra a destruição de centenas de instalações de água e saneamento no enclave palestino desde o início do conflito, em 7 de outubro, o que eleva o risco de doenças e infecções.
Mas os palestinos debilitados tampouco terão opções de tratamento: a Organização Mundial da Saúde ( OMS) e agências de ajuda humanitária alertaram na quarta-feira que os hospitais de Rafah, cidade no extremo sul anunciada como novo alvo de combates no início da semana, bem como o envio de ajuda humanitária na porção sul, estão com os dias contados.
O documento divulgado pela BBC Verify utilizou uma lista de instalações fornecidas pela Empesa de Serviços de Água dos Municípios Costeiros de Gaza (CMWU) e concluiu que mais da metade (53%) das 603 infraestruturas de água e saneamento, incluindo poços e sistemas de dessalinização — essenciais para o enclave palestino —, pareciam ter sido danificadas ou destruídas desde o início da ofensiva israelense lançada no enclave, após o ataque terrorista do Hamas ao sul do Estado judeu.
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Além disso, quatro das seis estações de tratamento de águas residuais, cruciais para a prevenção do acúmulo de esgoto e propagação de doenças também foram danificados ou destruídos. Como mais de 1,7 milhões de pessoas foram deslocadas internamente pelo conflito e buscaram abrigo em tendas, a acumulação de resíduos e esgoto nas ruas é uma ameaça ainda maior.
"As estações de tratamento de esgoto não estão funcionando e as ruas estão inundadas [com isso]" explicou Muhammad Atallah, que trabalha no Centro Palestino de Direitos Humanos.
A maior parte dos locais destruídos, segundo a rede britânica, estavam localizadas na região norte e em Khan Younis, cidade também no sul e alvo recente das tropas israelenses. O conflito também dificultou a reparação das instalações, e um ataque com mísseis a um importante armazém de depósito para itens usados em manutenção e serviços, também usado como depósito pelo Fundo da ONU para a Infância (Unicef), agravou a situação. Na ocasião, quatro pessoas morreram e outras 20 ficaram feridas, segundo o CMWU.
A BBC pontuou que nem todos os danos causados pelo Exército puderam ser identificados pelas imagens de satélite, e que portanto infraestruturas danificadas, mas que não foram captadas pelas imagens aéreas, poderiam ter sido deixadas de fora da análise. Outras também podem ter suspendido suas atividades ou estar operando com capacidade reduzida devido à falta de combustível, produto proibido pelo governo de Israel ao enclave desde a implementação do "cerco total", dois dias após o ataque em 7 de outubro, afirmando que seria explorado pelo Hamas para fabricar armas e explosivos.
O combustível, necessário para uma série de atividades em Gaza, foi proibido de entrar no enclave ainda no início do conflito, sob alegação de que o Hamas dispunha de 500 mil litros de diesel armazenados que poderia usar. A entrega só foi autorizada por Tel Aviv em novembro, após pressão internacional. Ainda assim, a quantidade limitada, aquém do necessário.
Procurada pela BBC, as Forças Armadas de Israel afirmaram que, no caso do armazém, a estrutura não era o alvo, mas que combatentes do Hamas que operam nas proximidades foram atingidos, tornando "possível que partes do armazém tenham sofrido danos como resultado do ataque". Em outros cinco casos de instalações atingidas, o Exército respondeu que, também em quatro deles, combatentes do grupo eram alvos. Em um, negou qualquer ataque aéreo.
"O Hamas armazena suas armas e munições dentro dessas estruturas civis, constrói infraestruturas terroristas debaixo delas e, a partir delas, lança seus ataques... As Forças Armadas estão localizando e a destruindo essas infraestruturas terroristas, que foram descobertas, entre outros locais, dentro e perto das instalações de água em questão."
Na guerra, os problemas ocorrem em cascata. A crise hídrica no enclave palestino eleva o número de infecções e doenças. Segundo a diretora-executiva da organização Médicos Sem Fronteiras do Reino Unido, Natalie Roberts, à BBC, a destruição das instalações de água e saneamento provocou "consequências desastrosas para a saúde da população".
"As taxas de doenças diarreicas aumentaram catastroficamente" destacou a especialistas, citando um quadro que pode agravar a desidratação, tornando-se fatal para crianças mais novas, enquanto a água contaminada pode significar risco alto para mulheres altas. "Isso está matando pessoas".
Hospitais e ajuda humanitária agonizam
O rastro da destruição do conflito — do norte em direção ao centro e que agora desce em direção ao extremo sul — bate à porta de Rafah. Cidade empobrecida até mesmo para os padrões de Gaza, a região com 250 mil habitantes passou a abrigar quase metade da população do enclave, deslocada pelo conflito. Com o anúncio do lançamento da ofensiva na segunda, a subsequente tomada do posto fronteiriço por Israel, e o fechamento da passagem de Kerem Shalom após a morte de quatro soldados em um ataque no domingo impactaram diretamente os hospitais da região e a entrada de ajuda humanitária — as duas passagem são as principais rotas de entrada dos comboios.
O diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou na quarta-feira que os hospitais no sul de Gaza tinham apenas três dias de abastecimento de combustível, e o combustível que a ONU esperava que fosse permitido entrar em Gaza naquele dia não tinha sido autorizado. Assim como a infraestrutura hídrica, sem combustível “todas as operações humanitárias serão interrompidas”.
O Hospital Abu Yousef al-Najjar – um dos três principais hospitais em Rafah que estava funcionando parcialmente antes da operação militar israelense nesta semana – foi totalmente fechado e esvaziado, de acordo com o Marwan al-Hams, diretor do hospital.
Todos os pacientes e médicos de al-Najjar fugiram ou foram transferidos para outras instalações médicas e que alguns profissionais de saúde arriscaram suas vidas para regressar ao complexo hospitalar para tentar resgatar equipamentos e suprimentos médicos, explicou por telefone ao New York Times.
Em uma entrevista coletiva na quarta-feira, grupos de ajuda humanitária reforçaram o apelo do diretor-geral da OMS.
— Se o combustível for cortado, a operação de ajuda entra em colapso, e entra em colapso rapidamente — advertiu Jeremy Konyndyk, presidente da Refugees International. — Isso significa que a água não pode ser bombeada, as luzes não podem ser mantidas acesas nos hospitais, os veículos não podem distribuir ajuda.
A falta de combustível também ameaça ainda mais a disponibilidade de alimentos em Gaza, onde as autoridades locais afirmam que algumas crianças já morreram de fome. Rafeek El Madhoun, gestor de programa do grupo de ajuda Rebuilding Alliance, disse durante a entrevista coletiva que a estrada costeira entre o sul e o centro de Gaza está cada vez mais lotada à medida que as pessoas fogem, e que os custos de transporte para levar suprimentos de um lugar para outro triplicaram.
Também na quarta-feira, a ONU informou que nenhum caminhão de ajuda humanitária entrou no enclave desde domingo através das duas passagens. Israel disse ter reaberto Kerem Shalom na quarta, mas por volta da meia-noite desta quinta-feira nenhum combustível ou outra ajuda humanitária entrou em Gaza através da passagem, de acordo com a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados do Oriente Médio (UNRWA, na sigla em inglês).
Para o diretor do programa de emergências de saúde da OMS, Michael Ryan, a ameaça imediata e abrangente à já sobrecarregada operação humanitária no enclave mina a afirmação de Israel de que sua ofensiva em Rafah tem sido “limitada”.
— O primeiro ato é parar o combustível, parar a comida, parar o remédio na fonte, na fronteira — explicou o diretor em uma entrevista coletiva separada, também na quarta. — Não chamo isso de ‘limitado’ e não chamo isso de ‘restrito’. Chamo isso de retomada de um bloqueio total a quase 2,5 milhões de civis que já estão passando fome, que já estão morrendo de doenças evitáveis e que precisam de nossa proteção.