GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

1 ano da guerra: embaixador diz que Brasil já antevia risco de conflito antes de ataque do Hamas

Pernambucano Alessandro Candeas, chefe do Escritório de Representação do Brasil junto ao Estado Palestino, disse que 'plano de contingência' foi preparado meses antes em meio à deterioração da situação

Faixa de Gaza após ataque aéreo israelenseFaixa de Gaza após ataque aéreo israelense - Foto: Thomas Coex / AFP

Em meio a todo o caos provocado pela guerra desatada pelo atentado de 7 de outubro do grupo terrorista Hamas contra Israel, o diplomata brasileiro Alessandro Candeas precisou manter um olhar analítico. Chefe do Escritório de Representação do Brasil junto ao Estado Palestino, em Ramallah, na Cisjordânia, o pernambucano de 58 anos era o principal representante do corpo diplomático brasileiro em territórios palestinos e foi o responsável imediato por observar a situação do terreno para operacionalizar a retirada de brasileiros e palestinos com vínculos no Brasil da zona de guerra. Recém-removido para o consulado brasileiro em Lisboa, Candeas relembrou aqueles dias em entrevista ao GLOBO, um ano após o ataque que fragmentou o Oriente Médio.

Como era a vida na Palestina até 6 de outubro de 2023? Qual era o foco da diplomacia brasileira até ali?
Não era surpresa que a escalada das tensões desde o início de 2023 iria desembocar em algum conflito sério. Acreditávamos que aconteceria em abril. Era uma "surpresa inevitável", mas a forma como aconteceram os atos terroristas de 7 de outubro, a retaliação desproporcional e a hecatombe humanitária nos surpreenderam. Muito da rotina do escritório do Brasil na Palestina consistia em monitorar a situação e informar o Itamaraty. Preparamos no início de 2023 um "plano de contingência", a ser implementado em caso de crise e retirada. Não se improvisa uma ação humanitária.

Defesa Civil local confirma mortes em ataques aéreos em GazaDefesa Civil local confirma mortes em ataques aéreos em Gaza | foto: Ammar Ammar/AFP

Como funcionava a relação oficial com o governo do Hamas àquela altura? O senhor teve contato com Ismail Haniyeh, Yahya Sinwar e figuras que se tornaram conhecidas no Ocidente?
O Brasil não tem nenhuma relação oficial com a autoridade de fato em Gaza. Nossa relação é com a Autoridade Palestina e com a OLP [Organização de Libertação da Palestina]. No entanto, como fazíamos duas vezes por ano consulados itinerantes em Gaza, para atender às necessidades de nossa comunidade brasileira ali residente, era necessário ter algum canal prático para inclusive autorizar nosso ingresso naquela Faixa e garantir a fluidez de nossos trabalhos. Nada além disso. Sempre fui muito bem recebido, porque o Brasil é muito querido na Palestina. Até assisti a um jogo da Copa do Mundo em Rafah. Não tive nenhum contato com as personalidades mencionadas.

Quando e como o senhor ficou sabendo que o Hamas havia lançado um ataque contra Israel, no dia 7? De imediato, foi possível dimensionar o que se passava?
Tomei conhecimento pelo aplicativo de celular "Red Alert", que soa sempre que há lançamento de foguetes. O aplicativo, que informa qual a área a ser atingida e o tempo que se deve correr para um abrigo, ficou tocando por toda a madrugada do 6 para o 7 de outubro. Simultaneamente, comecei a receber, pelas mídias sociais, vídeos e relatos impressionantes sobre a invasão de comunidades próximas de Gaza. Diante do ataque do Hamas, era mais do que previsível uma reação robusta de Israel.

Qual foi a reação inicial assim que ficou claro que Israel iria responder com força e que uma guerra mais ampla estava por vir?
Já esperávamos algo de grave desde o início de 2023, pela radicalização política, pelo crescimento da violência na Cisjordânia e em Gaza e pela permanente tensão gerada pela ocupação dos territórios palestinos e manifestações de atores extremistas de vários lados. Quando vi as imagens dos terroristas atacando os “kibutzim” e postos militares, dos reféns sequestrados e outras cenas e relatos hediondos, não tinha nenhuma dúvida de que haveria forte bombardeio como retaliação, mas não imaginávamos uma incursão terrestre, nem a catástrofe humanitária como resultado do uso desproporcional da força militar.

Explosão na cidade de Gaza após o disparo das forças israelensesExplosão na cidade de Gaza após o disparo das forças israelenses | foto: Mahmud Hams/AFP

O que a embaixada conseguiu realizar neste primeiro momento?
Nossa preocupação imediata, e nossa responsabilidade, era saber como estava nossa comunidade de brasileiros. Como fazíamos os consulados itinerantes, tínhamos os contatos, e nosso setor consular ligou para eles. Todos manifestaram muita apreensão, sabiam que haveria bombardeios e manifestaram desejo de apoio para evacuação. Já no dia seguinte tínhamos a lista dos brasileiros a serem retirados e a logística de transporte para levá-los à fronteira com o Egito. Tínhamos que agir rápido.

Como foi operacionalizar essa retirada? Como foram as negociações para que isso pudesse ocorrer, diante da fronteira fechada?
O primeiro objetivo foi retirar os brasileiros da zona de ataque, no norte de Gaza, e colocá-los em lugar seguro na fronteira com o Egito. Graças a Deus conseguimos fazer isso logo na primeira semana do conflito. Para dar garantias de segurança ao comboio e às residências provisórias das famílias brasileiras, comunicamos a lista das pessoas, as placas e detalhes dos ônibus e os endereços, com sua geolocalização, para as autoridades de segurança de Israel, a fim de que não fossem considerados alvos. Em seguida, foi dado início às negociações com as autoridades israelenses e egípcias para a autorização de saída, por meio de nossas embaixadas em Tel Aviv e no Cairo. Não houve negociação com as autoridades de fato em Gaza, apenas lhes informamos a lista de nossos nacionais.

E como foi o processo até a retirada de fato?
Enfrentamos angústia diária aguardando a reabertura da fronteira e a autorização da lista dos brasileiros. Enquanto isso, os mantínhamos protegidos em casas alugadas e enviávamos recursos para compra de água, alimento, gás de cozinha e remédios. O objetivo era livrar os brasileiros da catástrofe humanitária. Enquanto isso, a tensão crescia também na Cisjordânia. No dia 1 de novembro de 2023, conseguimos retirar 32 brasileiros via Jordânia, de onde tomaram voo da FAB para o Brasil. A última evacuação aconteceu em 8 de fevereiro deste ano, quando uma mãe brasileira-palestina saiu com 3 filhos menores, inclusive um bebê nascido na véspera do Natal de 2023. No total, 115 brasileiros e familiares próximos foram evacuados de Gaza e da Cisjordânia.

Crianças palestinas observam destruição deixada após ofensiva de IsraelCrianças palestinas observam destruição deixada após ofensiva de Israel | foto: Omar A-Qataa/AFP

O senhor considera que a operação de retirada foi um sucesso diplomático brasileiro?
Não tenho dúvida. Uma diplomacia que salva os brasileiros de um teatro de guerra. Implementamos um dos capítulos da política externa, que é a assistência aos nacionais brasileiros no exterior.

Como ficou a representação brasileira em Gaza? Ainda há cidadãos brasileiros residentes?
Não temos representação brasileira em Gaza. Nossa sede é em Ramallah, na Cisjordânia, e residência em Jerusalém Leste. Por isso, fazíamos os consulados itinerantes em Gaza, para ir ao encontro dos brasileiros ali residentes. Ainda permanecem em Gaza 11 brasileiros, que não puderam sair por uma série de impedimentos. Continuamos falando com eles quase que diariamente.

Um ano após os acontecimentos de 7 de outubro, o Oriente Médio que vemos hoje é o mesmo de um ano atrás? O que mudou?
Seriam necessários livros e documentários para responder a esta pergunta, mas certamente o Levante [porção central do Oriente Médio] está próximo a um conflito de larga escala se a comunidade internacional e suas instâncias multilaterais não atuarem para reverter a escalada das hostilidades. Conflitos interligados em várias frentes, com potencial de repercussão além do regional. A Guerra de Gaza tocou mais fundo na consciência mundial, pela violação dos princípios humanitários e inoperância de instâncias internacionais para evitar semelhantes atrocidades em pleno século XXI.

Território bombardeado com armamento vendido pelos Estados UnidosTerritório bombardeado com armamento vendido pelos Estados Unidos | foto: Jack Guez/AFP

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