Opinião

Haiti, enésima crise política

A reaproximação entre o Brasil e os Estados Unidos da América com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai proporcionar a retomada de discussões sobre diversos temas que estavam adormecidos na última quadra.

Comenta-se o interesse americano em uma outra participação do Brasil como força de estabilização no Haiti, proposta que veio a público diante do encontro entre os dois presidentes, previsto para este mês.

Em um círculo de desafios que nunca se encerra, o país de Toussaint Louverture está mergulhado em sua enésima crise política e de segurança a afetar seu povo e  vizinhos da América.

Estivemos por treze anos liderando o componente militar da MINUSTAH no Haiti, missão da ONU iniciada em 2004 e encerrada em 2017, o que nos qualificaria para a eventual cooperação sob a égide das Nações Unidas.

Ocorre que os freios e contrapesos da geopolítica mundial adquiriu novos contornos e o Brasil vai precisar equilibrar-se entre as lideranças dos Estados Unidos no Ocidente e da China no Oriente, hoje, os dois maiores pólos de poder militar e econômico do mundo.

A guerra da Ucrânia, a expansão da OTAN em direção ao leste, a disputa pelos mares no Sudeste da Ásia, a crise energética, a gestão do meio ambiente, a questão da soberania de Taiwan são variáveis que se apresentam a dificultar as relações internacionais.

Ao mesmo tempo, o emprego de forças com características militares e policiais para imposição da “paz” (peace enforcement) mostra-se incompatível com a senda de legalidade que perseguimos (aliás é artigo de nossa constituição), podendo trazer reflexos para a segurança interna.

Pela experiência adquirida como comandante do Batalhão Brasileiro de força de paz no Haiti e da Operação Arcanjo na cidade do Rio de Janeiro acredito que o jogo da guerra traz mais aspectos negativos que positivos para aceitar a missão. 

Claro que a disciplina intelectual prevalecerá sempre como costuma ser nas discussões entre militares e quando o nível político decidir, ele contará com a força total das Forças para levá-la a bom termo.

Operações como essa exigem uma preparação muito específica dos militares, com características dos órgãos de segurança pública, que não estão normatizadas nos processos de treinamento de forças regulares.

Aliás, na estrutura das missões da ONU o componente militar não fica na mesma linha de subordinação do componente policial, demonstrando que na percepção daquele órgão são missões distintas.

Talvez por isso, segundo consta de algumas apurações jornalísticas, o Ministério da Defesa e as Forças coirmãs, em outras ocasiões, assessoraram pela rejeição  a esses convites formulados pela ONU e alertaram o governo brasileiro para as dificuldades legais e operacionais.

Outro aspecto a ser pontuado é a dificuldade de manutenção do equilíbrio social após a saída dessas forças do ambiente pacificado.

Ficamos anos no Haiti, anos nos complexos do Alemão e da Penha, operamos depois na comunidade da Maré e constatou-se que logo após o final da operação as áreas voltavam ao estado de anomia em que se encontravam quando do início das atividades.

Se não houver um conjunto de ações multidisciplinares e genuína vontade das autoridades e sociedade em geral de enfrentar os desafios e suplantar o poder paralelo do crime organizado e das milícias, o resultado certamente será negativo. 
Orgulho por participar e frustração com os resultado é a herança que restará mais uma vez.

Portanto, é preciso que o auspicioso diálogo entre o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Joe Biden seja travado com muita serenidade e profissionalismo diplomático (o que temos de sobra nos homens e mulheres do Itamaraty, herdeiros de Rio Branco), colhendo percepções e antecipando posturas.

Países podem ser alinhados, até amigos, mas orientam suas relações apenas pelos interesses.

Paz e bem!


*General de Divisão da Reserva


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