CONFLITOS

''Hipocrisia'': sul global critica Ocidente por criticar Rússia mas dar apoio incondicional a Israel

EUA e Europa entram na mira de líderes de países emergentes e da opinião pública em países do Sul Global que questionam posições conflitantes com relação a conflitos no Leste Europeu e no Oriente Médio

Tanque de Guerra em IsraelTanque de Guerra em Israel - Foto: Jalaa Marey/AFP

Por 20 meses, o governo do presidente americano, Joe Biden, tentou estabelecer uma superioridade moral em relação à Rússia, condenando a guerra brutal contra a Ucrânia por matar civis indiscriminadamente. O argumento ressoou em grande parte do Ocidente, mas teve menos força em outras partes do mundo, que viam a guerra mais como um conflito entre as grandes potências e se recusaram a aderir a sanções ou a isolar Moscou de outra forma.

Agora, enquanto Israel bombardeia a Faixa de Gaza, matando mais de 4,3 mil pessoas desde 7 de outubro, o apoio inabalável de Biden ao Estado Judeu corre o risco de criar novos obstáculos nos seus esforços para conquistar a opinião pública global.

Em discurso no Salão Oval da Casa Branca, na quinta-feira, Biden juntou o apoio americano à Ucrânia e a Israel, descrevendo ambas as nações como democracias que lutam contra inimigos determinados a “aniquilá-los completamente”. A Rússia invadiu e pretende anexar a Ucrânia, enquanto o Hamas, o grupo que controla Gaza e nega o direito de existência de Israel, organizou um ataque terrorista que matou pelo menos 1,4 mil pessoas no sul de Israel.

Mas o contra-ataque de Israel a Gaza, as suas ameaças de organizar uma invasão terrestre e o forte apoio dos EUA ao seu mais importante aliado no Oriente Médio, independentemente disso, motivaram acusações de hipocrisia.

Tais acusações não são propriamente novas no conflito do Oriente Médio. Mas a dinâmica da crise dupla foi além do desejo de Washington de reunir apoio global para isolar e punir a Rússia por invadir o seu vizinho.

Cada vez mais, a região do Oriente Médio está a emergir como uma frente renovada na luta pela influência no Sul Global, opondo o Ocidente à Rússia e à China.

— A guerra no Oriente Médio irá criar um fosso crescente entre o Ocidente e países como o Brasil e a Indonésia, estados-chave do Sul Global — afirmou Clifford Kupchan, presidente do Eurasia Group, uma organização de avaliação de risco com sede em Nova York. — Isso tornará a cooperação internacional na Ucrânia, assim como a aplicação de sanções à Rússia, ainda mais difícil.

O presidente Joko Widodo, da Indonésia, nação muçulmana mais populosa do mundo — que não reconhece Israel — condenou as “injustiças em curso contra o povo palestino”. A guerra em Gaza só irá piorar a situação global, disse ele, ameaçando o aumento dos preços do petróleo depois de a guerra na Ucrânia já ter desacelerado as exportações de trigo.

No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou o fornecimento de armas dos EUA à Ucrânia como “incentivo” à guerra, mas culpou ambos os lados pelo conflito e ofereceu-se para mediar. O Brasil, como presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas este mês, elaborou uma resolução de cessar-fogo humanitário em Gaza, que também condenou explicitamente “hediondos ataques terroristas do Hamas”.

Após os Estados Unidos terem vetado a resolução por não mencionar o direito de Israel à autodefesa, o embaixador do Brasil nas Nações Unidas, Sérgio França Danese, expressou frustração.

— Centenas de milhares de civis em Gaza não podem esperar mais — disse ele. — Na verdade, eles esperaram muito tempo.

Nesta segunda-feira, Lula falou com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sobre os conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio. Por telefone, os dois presidentes concordaram quanto à necessidade de que cessem os bombardeios na Faixa de Gaza e que haja uma imediata libertação dos reféns, de acordo com comunicado emitido pelo Itamaraty.

Dois pesos, duas medidas
Os líderes árabes – incluindo o presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, o rei da Jordânia, Abdullah II, e o ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, o príncipe Faisal bin Farhan al-Saud – atacaram o que chamaram de "padrões duplos", em discursos na cúpula de paz do Cairo, no sábado.

— Em qualquer outro lugar, atacar infraestruturas civis e deixar deliberadamente uma população inteira sem alimentos, água e necessidades básicas seria condenado e a responsabilização seria imposta — disse o rei Abdullah. — O direito internacional perde todo o valor se for implementado de forma seletiva.

Os palestinos criticaram as centros de poder do Ocidente por não expressarem indignação relativamente ao bombardeio de Gaza, semelhante ao posicionamento sobre os ataques com mísseis russos contra cidades e infraestruturas ucranianas, classificados como “bárbaros” e “crimes contra a humanidade”.

Quando a guerra na Ucrânia eclodiu, os palestinos ficaram exultantes com a posição dura assumida pelas capitais ocidentais contra um país que ocupava terras de outro, disse Nour Odeh, um comentarista político palestino baseado em Ramala.

— Mas parece que a ocupação só é ruim se os caras que a fazem não estiverem do seu lado — afirmou.

De certa forma, o conflito de Gaza tem sido uma bênção para o Kremlin, afastando os holofotes da guerra na Ucrânia e fortalecendo a imagem da Rússia no Oriente Médio e no Sul Global. Nos últimos anos, o presidente Vladimir Putin tem procurado restaurar alguma da influência perdida da União Soviética na região, intervindo militarmente em guerras civis na Síria e na Líbia. Fortaleceu enormemente os laços com o Irã, um país que Israel considera uma ameaça à segurança nacional.

O apoio russo ao Hamas tem sido visto como uma extensão desses esforços, com Putin a comparar o cerco de Gaza ao cerco de Leningrado, na Segunda Guerra Mundial, um símbolo sagrado na Rússia.

A China também tem procurado expandir a sua influência no Oriente Médio, tendo recentemente mediado um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita para restaurar as relações. A Rússia e a China se recusaram a condenar o Hamas. Em vez disso, criticaram o tratamento dispensado por Israel aos palestinos, especialmente a sua decisão de cortar a água e a eletricidade a Gaza e o número de mortes de civis. Apelaram à mediação internacional e a um cessar-fogo.

Olhar para o Sul Global
A causa palestina prospera há muito tempo no Sul Global, pelo que a guerra de Gaza apenas aumentou os ressentimentos na África, na Ásia e na América Latina de que o Ocidente está tratando a Ucrânia como um caso especial porque é uma guerra europeia. Denunciam o dinheiro gasto em armamento para a Ucrânia, enquanto os objetivos de desenvolvimento internacional são ignorados.

— [Há uma percepção de que o Ocidente] se preocupa mais com os refugiados ucranianos, com o sofrimento dos civis ucranianos, do que quando refugiados sofrem no Iêmen, em Gaza, no Sudão, na Síria — disse Hanna Notte, analista da Eurasia Group baseada em Berlim, no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

Isto ajuda a ilustrar a razão pela qual o Ocidente não conseguiu persuadir países como a Índia e a Turquia a apoiarem sanções contra a Rússia. Dada a situação em Gaza, é pouco provável que esse esforço tenha sucesso tão cedo.

— É uma enorme dor de cabeça para os diplomatas ocidentais porque eles gastaram muito tempo este ano tentando encantar o Sul Global — disse Richard Gowan, diretor de ONU no International Crisis Group. — Vimos o apoio e o interesse pela Ucrânia desaparecerem entre os membros da ONU ao longo deste ano.

Na Europa, a discussão desenrolou-se em grande parte nas redes sociais, onde alguns comentaristas criticaram a Europa pela hipocrisia em suas diferentes abordagens às guerras na Ucrânia e em Gaza, enquanto poucos políticos comentaram diretamente.

Carl Bildt, ex-primeiro-ministro sueco, escreveu no X (antigo Twitter), que a maior parte do mundo percebe um duplo padrão na política ocidental em relação às duas guerras. “Certo ou errado, isso é algo com o qual devemos lidar”, escreveu ele.

Acertando a narrativa
Há sinais de que isso está acontecendo agora. Josep Borrell, o principal diplomata da União Europeia, disse em um discurso no Parlamento Europeu na quarta-feira que cortar o abastecimento de água era uma violação do direito internacional, independentemente de onde acontecesse. “Está claramente afirmado que privar uma comunidade humana sitiada de um abastecimento básico de água é contrário ao direito internacional – na Ucrânia e em Gaza”, disse ele.

Alguns analistas sugeriram que a hostilidade em relação à política ocidental na Ucrânia em certos cantos do mundo deveria ser considerada inevitáveis, mas que ainda poderia ser tratada com tato.

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos enfrentaram frequentemente um bloco hostil de nações não-alinhadas, bem como a União Soviética e os seus aliados, e ainda assim conseguiram prevalecer, disse John Herbst, antigo enviado dos EUA à Ucrânia e também diplomata em Israel e os territórios ocupados, atualmente analista no Atlantic Council.

O conflito de Gaza pode tornar a conquista de apoio à Ucrânia “um pouco mais difícil”, disse ele, mas de forma alguma impossível.

O objetivo de Israel de destruir o Hamas é provavelmente ambicioso demais, disse ele, mas pode enfraquecer enormemente a capacidade militar do Hamas. Os Estados Unidos sofrerão um golpe na opinião pública global pelo seu apoio a Israel no curto prazo, mas isso provavelmente desaparecerá com o tempo, previu ele, e não deverá dissuadir Washington de continuar a defender a sua posição em relação à Ucrânia.

— Devíamos explicar que o que Moscou está fazendo na Ucrânia é perigoso para todas as nações, porque se o tipo de ordem internacional que o Kremlin está perseguindo, e que Pequim está a seguir, virar a ordem internacional, isso significa que todos os Estados pequenos e comparativamente fracos estariam à mercê de seus vizinhos maiores — disse Herbst.

Veja também

Julgamento de acusado de drogar mulher para que outros homens a estuprassem é novamente adiado
Justiça

Julgamento de acusado de drogar mulher para que outros homens a estuprassem é novamente adiado

Picada de aranha infectada com bactéria "comedora de carne" deixa buraco na barriga de britânico
Saúde

Picada de aranha infectada com bactéria "comedora de carne" deixa buraco na barriga de britânico

Newsletter