Impactados pela pandemia, serviços eletivos de saúde têm retomada retraída
Profissionais do setor têm notado baixa demanda mesmo após a volta dos procedimentos. Receio de contágio e afastamentos são algumas das causas.
Em um mundo essencialmente marcado por dúvidas, uma pandemia como a do novo coronavírus agrava as incertezas. Por mais que “protocolo” tenha virado palavra-chave na rotina de combate a uma infecção que matou cerca de 750 mil pessoas no planeta - mais de 7 mil delas em Pernambuco -, no diverso terreno dos hábitos pessoais, nem sempre há uma resposta pronta para tudo o que se deve fazer. Algumas recomendações são repetidas à exaustão: usar máscara, lavar as mãos, andar com álcool em gel e guardar distância mínima de 1,5 metro dos que estiverem ao redor. No entanto, em meio à retomada das atividades sociais e econômicas, há questões que não são absolutas, respondidas com um relativo “depende”.
Uma dessas dúvidas se refere à tarefa de manter a própria qualidade de vida. Devo marcar os exames que fiquei de fazer no começo do ano? Ou é melhor esperar os números baixarem mais um pouco para começar o check-up que planejava para abril? Dados divulgados em julho pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão federal responsável pela regulação dos serviços da rede particular, mostram que, desde fevereiro, antes ainda da Covid-19, o setor tem registrado quedas no número de autorizações para realização de exames e terapias em todo o País. Só em abril, quando a pandemia vinha em franca expansão, foram 63% a menos que no mesmo mês do ano passado. Em maio, a redução foi de 47%. Em junho, 26%.
As quedas percentuais ficam menores à medida que se retomam os atendimentos, indicando um retorno lento após a liberação dos procedimentos eletivos, que, no Estado, voltaram em junho. Para o presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas de Pernambuco (Sindhospe), George Trigueiro, há um receio das pessoas em procurar as unidades com medo do contágio do coronavírus. “Houve um aumento na demanda de cirurgias essenciais, principalmente as de [tratamento contra] câncer, mas não houve ainda o esperado na retomada dos 100% das cirurgias que eram realizadas antes. Se eu realizava 30 cirurgias, agora não realizo 50%”, observa.
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Na rede pública, a pandemia também tornado os pacientes mais cautelosos em procurar o serviço. Diretor-geral do Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco Professor Luiz Tavares (Procape), Ricardo Lima tem percebido um movimento mais lento. “Quando o Procape aderiu como referência para tratar os cardiopatas com Covid-19, o hospital foi inicialmente esvaziado e ficamos atendendo os casos de emergência. Nisso, a taxa de ocupação ficou oscilando em torno de 30%. Em julho, determinamos que estava na hora de reabrir e fomos abrindo paulatinamente. Hoje a taxa de ocupação está em 60%”, estima.
Mais de um mês depois da retomada, o número de atendimentos na unidade continua abaixo do que havia antes, não só devido à cautela de uma parte da população, mas por causa das próprias restrições exigidas pelo protocolo para a convivência das atividades com a Covid-19. Entre os cuidados básicos previstos na portaria da Secretaria Estadual de Saúde (SES) publicada em 9 de junho, estão barreiras físicas na recepção, demarcação de pontos no chão para garantir o distanciamento social, uso de máscaras e aferição de temperatura dos funcionários.
No Procape, houve separação de áreas para pacientes com e sem Covid. “Hoje, na emergência, nossa capacidade é de atender, no máximo, 70 doentes. Antes, a gente chegava a atender 120. Em resumo, não temos a mesma demanda de doentes que tínhamos anteriormente. É como se os doentes estivessem se resguardando. Mas saímos de uma taxa de ocupação de 30%, 35%, para 60%”, comenta Ricardo Lima.
Retorno paulatino
Outro fator que contribui para isso é o afastamento dos que atuam na linha de frente. Além da necessidade de proteger os profissionais com mais de 60 anos ou com doenças crônicas preexistentes, as equipes que trabalham nos hospitais formam o grupo mais exposto à contaminação. Nesses cinco meses de pandemia em Pernambuco, foram infectados mais de 19 mil atendentes, incluindo médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem e outros trabalhadores.
Na visão do secretário estadual de Saúde, André Longo, é natural que a retomada seja “paulatina”. “É certo que isso se daria em tempos distintos na medida em que muitos dos hospitais estavam ainda muito envolvidos no esforço para a Covid-19, inclusive com deslocamento de recursos humanos que faziam cirurgias eletivas e tiveram que ser levados para os cuidados emergenciais. Outros profissionais tiveram que se afastar por conta da idade ou da situação de comorbidade”, argumenta.
Nesse cenário de tantas variantes e precauções, voltando àquelas perguntas lá do início, é preciso avaliar a situação de cada caso, considerando o grau de importância daquele procedimento desmarcado para o quadro clínico da pessoa. Se, por um lado, operações e acompanhamentos cardiológicos são prioritários, por outro, cirurgias plásticas para fins estéticos não devem ser feitas agora. “O foco tem que ser concentrado na segurança dos pacientes e no risco que precisa ser medido. Por exemplo, não há nenhum sentido, neste momento, em fazer cirurgias plásticas estéticas. O risco sobrepõe o benefício ou a necessidade”, justifica o secretário André Longo. “É fato que cirurgias de baixa complexidade precisam ser postergadas até que a gente tenha uma menor circulação viral”.
Risco assintomático
Um dos principais alertas emitidos por especialistas do mundo todo desde o início da pandemia diz respeito aos assintomáticos, aqueles que, mesmo contaminados pelo Sars-Cov-2, não apresentam sintomas da Covid-19. Por isso, pacientes que forem fazer um procedimento eletivo precisam ser testados. Um risco silencioso que exige que se tomem os cuidados preventivos ainda no consultório, atrasando o tratamento.
Foi o caso da estudante de jornalismo Suzyanne Freitas, de 21 anos. Aos 12, ela começou a desenvolver displasia mamária, provocada por alterações hormonais durante a adolescência. A disfunção, que prejudica o crescimento das mamas, também afeta a coluna, causando dores nas costas. O problema é corrigido com uma cirurgia plástica, que a jovem se preparava para fazer no mês passado. “Comecei a me organizar financeiramente, fiz uma série de exames que, se eu for falar aqui, vai dar um livro”, brinca. “Estava tudo ok, mas faltava fazer o teste do coronavírus. E para a minha surpresa, deu positivo”.
Suzyanne tinha contraído a doença dois meses antes. Na época, afastou-se do estágio para se isolar em casa. Ela conta que sentiu apenas dor de cabeça e perda do olfato e do paladar. Após os 14 dias de quarentena, considerando-se curada, a estudante retornou às atividades do dia a dia e entrou de férias na faculdade. Foi quando decidiu marcar o procedimento. “Em junho, fiz todos os exames para me operar em julho. Sendo que eu fiz o teste e deu positivo. Aí veio a minha decepção. Deu errado, mas foi a prevenção para eu não ir à sala cirúrgica com o vírus”, comenta. No fim do mês, Suzyanne passou por novo teste, que deu negativo, mas, com a volta das aulas remotas do curso, adiou a cirurgia para o fim do ano.
O cirurgião plástico Antônio Carlos Braga tem acompanhado esse risco de perto. “O paciente que for fazer uma cirurgia eletiva com anestesia geral tem que fazer o exame sorológico, o RT-PCR, e uma tomografia computadorizada no tórax. É incomum, mas o paciente pode dar o exame sorológico negativo e ter doença em atividade. Às vezes, tem testes que são falsos positivos ou falsos negativos”, conta. Nessa inconstância de possibilidades, todo cuidado é essencial, visto que, se um paciente infectado for à mesa de cirurgia, pode sofrer complicações e deixar de ser assintomático. “Poderia não acontecer nada, mas, como a cirurgia é um processo agressivo, o paciente, que já está com o organismo imunologicamente debilitado, pode começar a desenvolver os sintomas”, esclarece o médico.
Tempo de espera
Os atendimentos odontológicos são outro serviço que tem passado por adiamentos. Antes da pandemia, a estudante de contabilidade e bancária Izabela Veríssimo, 21, via-se perto de concluir um tratamento dentário de muitas etapas. Sem raízes nos dois dentes superiores da frente, ela usa aparelho para manter a arcária no devido lugar e manter o espaço que hoje é ocupado por dois dentes falsos. “Eu ia fazer um implante. O problema é que eu não tinha osso para sustentar esse implante”, relata.
Para garantir esse osso de sustentação, é necessário fazer um enxerto, extraindo uma pequena parte da mandíbula. Só depois deve ser feito o implante. “Aí veio a pandemia e eu tive que ficar como estava”, conta Izabela. Após quatro meses de espera, a jovem deu início aos exames pré-operatórios e agendou o primeiro procedimento, o do enxerto, para a próxima segunda-feira. “Fiquei esse tempo todo dependente do dente falso preso no aparelho. Eu não consigo comer normal como antes. Sanduíche eu tenho que comer com garfo e faca”, diz. “O enxerto leva seis a oito meses para cicatrizar. Daí vou colocar a coroa do implante e, seis meses depois, quando cicatrizar, vou fazer o implante. Ou seja, vai demorar um ano ainda”.
Nessas idas e vindas entre laboratórios e consultórios, o comportamento é crucial para evitar o contágio. Izabela observa que, embora os estabelecimentos busquem seguir os protocolos, as pessoas, às vezes, não prestam atenção. “Você tem que sentar no lugar certinho, não ficar todo mundo junto um do outro. Tem gente que quer informação, aí chega do lado, aí o atendente tem que chamar atenção da pessoa. Até fica chato, as pessoas esquecem nessa pandemia”, avalia.