Inconclusos após cinco anos, estudos sobre origem do vírus Sars-Cov-2 mantêm brecha para conspiração
Hipótese de infecção por animais ganhou muito mais aceitação na academia, mas teoria do vírus de laboratório ainda tem defensores
Cinco anos após eclodir a pandemia de Covid-19, é um consenso razoável que a origem da doença foi um evento de spillover, ou seja, a passagem de um vírus de um animal para humanos, e que o surto inicial se concentrou numa feira livre na China. Como, onde e quando isso aconteceu, porém, ainda não é sabido com exatidão, e dessa névoa de incerteza seguem brotando teorias conspiratórias.
A hipótese favorita dos poucos cientistas que não acreditam na origem zoonótica do vírus Sars-Cov-2 é a de que ele teria “vazado” de um experimento laboratorial misterioso. A sustentação para essa tese, porém, tem base apenas especulativa.
“Os dados disponíveis apontam claramente para um surgimento zoonótico natural dentro do Mercado Atacado de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan, ou intimamente ligado a ele. Não há evidências diretas que vinculem a emergência do Sars-CoV-2 ao trabalho de laboratório conduzido no Instituto de Virologia de Wuhan”, afirma o virologista Edward Holmes, em artigo analisando a literatura científica sobre o tema, na revista Annual Review of Virology.A
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Por causa da proximidade genética do vírus da Covid-19 com outros coronavírus que circulam em morcegos, cientistas creem que, em ultima instância, esse micróbio remonte a um patógeno desses mamíferos voadores.
Não existem muitas maneiras de um vírus de determinado organismo se adaptar a outros bastante afastados, uma das poucas possibilidades é por meio de hospedeiros intermediários. Um dos suspeitos de levar o vírus de morcegos a pessoas era o simpático pangolim, um mamífero asiático que lembra vagamente um tatu. Essa espécie, que abriga naturalmente alguns tipos de coronavírus, é comercializada ilegalmente na China por traficantes de animais silvestres.
Na investigação epidemiológica inicial, porém, autoridades locais não conseguiram encontrar pangolins no mercado de Huanan, nem nenhum animal infectado. Sem evidências mais concretas à disposição, cientistas recorreram a estudos de genética para caçar o hospedeiro transitório do coronavírus. Olhando para as mutações naturais sofridas pelos vírus, é possível saber quem transmitiu o patógeno para quem, a partir das amostras colhidas de vários indivíduos infectados.
Por essa linha de evidências, o papel do mercado de Huanan na pandemia foi bem estabelecido, tanto por um estudo do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (China CDC) quanto por um estudo americano liderado pela Universidade do Arizona.
Mas o debate sobre como o vírus saltou de morcegos para humanos e foi parar em Wuhan continua. Um grupo de cientistas do Brasil e da França usou a genômica para procurar cadeias de transmissão mais longas, tentando identificar outros potenciais hospedeiros do vírus. Compararam o vírus da Covid-19 com outros de animais silvestres (camundongos, musaranhos, civetas...) e domesticados (camelos, cães, porcos...).
O trabalho identificou que formas ancestrais do Sars-Cov-2 provavelmente saltaram de uma espécie para outra no passado um punhado de vezes, e um mamífero emergiu como suspeito.
“Spillovers de morcegos para outras espécies são raros, mas têm a maior probabilidade de ser para humanos do que para qualquer outra espécie de mamífero, implicando humanos como hospedeiros intermediários evolutivos”, escreveram os cientistas liderados pelo biólogo Renan Maestri, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em artigo na revista eLife.
Em outras palavras, é bem possível que não tenha existido hospedeiro intermediário, e que uma pessoa tenha contraído o vírus diretamente de um morcego. Saber se esse “paciente-zero” foi ao mercado de Huanan ou se o vírus já tinha contaminado alguns poucos humanos antes de chegar ali é algo difícil de investigar. Se a resposta para isso não surgiu nos primeiros dias do surto, cientistas têm pouca esperança de que ela surja agora, cinco anos depois.
Aspectos geopolíticos
A ausência dessa peça no quebra-cabeça é algo que ajuda a alimentar a teoria do vazamento laboratorial. Se biologicamente a hipótese tem pouca sustentação, por outro lado ela é nutrida pelo fato de o governo chinês ser um regime fechado com um problema crônico de transparência.
O China CDC levou três anos para publicar, em artigo na revista Nature, os dados que embasaram seu estudo no mercado. Há farta evidência de que Pequim tentou abafar o surto inicial da Covid-19, quando ainda não estava claro que o vírus iria fugir do controle.
Depois disso, autoridades do país impuseram um lockdown em Wuhan e até receberam um comitê de cientistas da Organização Mundial da Saúde. O relatório técnico do comitê publicado em março de 2021 classificou o spillover como uma origem do vírus “provável a muito provável”, a carne contaminada como hipótese “possível” e um incidente de laboratório como “extremamente improvável”.
Contestações a essa versão continuam a ser publicadas até hoje. Um estudo da Universidade de Nova Gales do Sul, liderado pelo pesquisador sino-australiano Li Chen, usou uma abordagem diferente para tratar da questão, decompondo-a sob ponto de vista da análise de risco.
Além da proximidade do centro de virologia de Wuhan e da busca fracassada de animais infectados, os pesquisadores levaram em conta que uma proteína do vírus tinha forma suspeita e que virologistas de Wuhan supostamente teriam apresentado sintomas gripais antes do surto no mercado. Num sistema de pontuação usado pelo pesquisador, o Sars-CoV-2 ganhou uma probabilidade de 68% de ter tido origem artificial.
“Essa avaliação de risco não responde qual foi a origem do Sars-CoV-2, mas mostra que a possibilidade de uma origem laboratorial não pode ser facilmente descartada”, escreveu Chen em estudo controverso na revista Risk Analysis.
Se o governo chinês foi menos transparente do que poderia ter sido, é verdade que líderes ocidentais fizeram extenso uso político da origem da pandemia. Os presidentes de ocasião no Brasil (Jair Bolsonaro) e nos Estados Unidos (Donald Trump) insinuaram mais de uma vez, sem provas, que o vírus teria sido liberado intencionalmente por chineses. Na China circulava um boato de que o vírus era americano.
“Em meio às tensões geopolíticas existentes, acusações frontais e politicamente motivadas só fizeram encorajar a disseminação de desinformação”, escrevem os cientistas políticos Lucy Best e Yangzhong Huang, num ensaio sobre as relações diplomáticas entre EUA e China. “Aquilo que deveria ter sido sobretudo uma investigação científica acabou sendo ofuscado pela política.”
Quem perdeu com essa contenda foi o planeta. É difícil dizer se a história da origem da Covid-19 desapareceu para sempre em meio a essa contenda, mas ainda há cientistas esperançosos.
“Quando surgem emergências de saúde, cientistas buscam descobrir a causa porque esse conhecimento pode aumentar nossa compreensão de riscos e estratégias de prevenção”, escreveram pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, no New England Journal of Medicine. “Um conjuntado de fatos científicos determinados objetivamente pode até não neutralizar totalmente a retórica política em torno das origens, mas a busca por eles deve continuar.”