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Irmã Dulce se torna neste domingo a primeira santa nascida no Brasil

Canonização é reconhecimento a uma mulher nordestina, de aparência frágil, que se tornou fortaleza dos invisibilizados pela sociedade.

Irmã DulceIrmã Dulce - Foto: Divulgação/Obras Sociais Irmã Dulce

O Vaticano oficializa, neste domingo, o que para o maestro José Maurício, 51, é uma convicção desde que rezou para Irmã Dulce antes de dormir e acordou enxergando, no dia 10 de dezembro de 2014, quatorze anos depois de perder a visão por conta de um glaucoma. O caso investigado pela Igreja Católica ao longo de quatro anos foi o motivador da canonização da Santa Dulce dos Pobres, a primeira santa nascida no Brasil. Uma mulher nordestina, de aparência frágil, mas que se tornou uma fortaleza dos invisibilizados pela sociedade.

O maestro nunca pediu a nenhum santo para voltar a enxergar, nem para Irmã Dulce. O pedido feito com a imagem que era da sua mãe foi para curar uma forte conjuntivite, que lhe causava dor e derrames nos olhos já cegos. “Ela me deu muito mais que eu pedi. Quando acordei, percebi que tava enxergando e foi um susto grande. Liguei para minha esposa e quando ela chegou em casa, eu vi o seu rosto pela primeira vez”, afirma o soteropolitano, que mora com a esposa Marize, na Zona Norte do Recife, desde 2011. Antes da cegueira, trabalhava com informática. Depois, fez aulas de braille, regência e musicografia, virou o “maestro cego”, apelido que não faz mais sentido.

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Exames que comprovam a danificação do seu nervo óptico foram enviados e analisados por sete médicos da Santa Sé para que o milagre fosse oficializado, 15 pessoas que conviveram com o maestro foram entrevistadas por um enviado do Vaticano, tudo em segredo canônico. Uma delas é o oftalmologista Roberto Galvão Filho, do Instituto de Olhos do Recife, que exerce a profissão desde 1997. “Eu tinha examinado ele antes e o glaucoma era extremamente avançado, não tinha perspectiva de volta. Ele tinha perdido 99,99% do nervo óptico, não enxergava. Até agora, não achei o que justificasse a volta da visão. Do ponto de vista médico, não tem explicação”, afirma, detalhando que a visão do maestro é de 20/60 na escala Snellen - que baseia testes de visão com letras de diferentes tamanhos. “É três linhas abaixo da visão normal, é algo excelente para quem não enxergava nada”.

Antes de José Maurício, Irmã Dulce foi beatificada em 2011, depois de ter reconhecido um milagre ocorrido em 2001, na cidade de Itabaiana (SE). Lá, orações à ela teriam interrompido a hemorragia que acometia Cláudia Cristina dos Santos por 18 horas, após o parto do segundo filho. Os relatos de causas alcançadas chegam a 14 mil, catalogadas pela OSID. Vão de cartas a laudos médicos de pessoas que creditam à Santa desde o desaparecimento de tumores à cura de unha encravada. Os testemunhos percorrem todo o país e chegam ao exterior, da Argentina ao Vietnã.

Pragmatismo
Aos 13 anos, antes de se tornar freira, o "Anjo Bom da Bahia" já atendia doentes no portão de casa. Já com o hábito religioso, em 1935, na comunidade dos Alagados, composta por palafitas, dava assistência aos moradores, dando indícios do que viria a ser a sua grande obra. Em 1949, ocupou o galinheiro do Convento de Santo Antônio e lá abrigou 70 doentes, numa época em que a carteira de trabalho assinada era requisito para o acesso aos hospitais públicos e milhares de pessoas não tinham a quem recorrer. Nesse local, surgiram as Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), que atualmente atende 3,5 milhões de pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Ela nunca teve medo de riscos. No momento em que ocupou o galinheiro e criou uma enfermaria improvisada, não havia garantia alguma de que daria certo. Foi atrás de recursos com empresários, pequenos comerciantes e, em 1950, já tinha 150 leitos. A visão estratégica e sua capacidade de execução são aspectos surpreendentes”, ressalta o jornalista Graciliano Rocha, autor do livro “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres”, resultado de oito anos de pesquisas.

Para viabilizar sua obra, usou sua influência crescente na cidade para conseguir o apoio de grandes empresários e políticos. Norberto Odebrecht, fundador da empreiteira que leva o seu sobrenome, foi um dos seus principais suportes, realizando obras a preço de custo. Em 1972, o OSID já contava com 300 leitos e tornou-se hospital escola da Universidade Católica da Bahia. Nesse contexto, Irmã Dulce ganhou o apoio do médico Gerson Mascarenhas, espírita filiado ao Partido Comunista, preso por duas vezes durante a Ditadura Militar. “Apesar das diferenças, os dois se davam muito bem. Irmã Dulce sempre teve parceiros que, do ponto de vista pessoal era inusitado, mas que, na prática, davam muito certo”. Irmã Dulce também teve que exercer um lado político. O hospital, afinal de contas, dependia de doações. Apesar das boas relações com o ex-governador baiano Antônio Carlos Magalhães e com o ex-presidente José Sarney, por exemplo, conseguia manter-se apartidária. “Nunca encontrei nada sobre ela em palanque, falando em favor de candidatos. O pragmatismo de Irmã Dulce ficou evidente quando foi questionada qual era o seu partido. “Meu partido é o pobre, só não gosto que usem meu nome para política porque isso atrapalha o meu trabalho."

Opção pelos pobres
Ao pé da letra, a canonização é o reconhecimento do Vaticano a quem teve uma vida tão próxima a Deus, que é capaz de realizar milagres. O processo, porém, é fruto de uma escolha do papa e reflete as prioridades do seu pontificado. Desde a escolha do seu nome, em homenagem a São Francisco de Assis, o papa externou a opção. “Ela é uma santa que recoloca para nós a escolha que o Papa Francisco tem ressaltado. Ela saiu do convento e foi em direção aos pobres. É uma mensagem atual, quando os indicadores revelam crescimento de desigualdade no país”, explica o padre jesuíta Clóvis Cabral, teólogo e educador social da Universidade Católica de Pernambuco.

Com a canonização de Santa Dulce dos Pobres, a Igreja aposta na renovação e homenageia alguém que atuou pelos necessitados em periferias do país que considera o mais católico do mundo, com mais de 120 milhões de seguidores. Apesar de ser um dos alicerces do catolicismo, o Brasil contava apenas com Frei Galvão e os Mártires de Cunhaú e Uruaçu (cultuados em conjunto) entre santos nascidos em seu território. “É uma forma de reconhecer a emergência nesse novo milênio das igrejas fora da Europa. Muitos santos que cultuamos, nasceram lá”. O padre fala da Santa com a familiaridade de alguém que morou na periferia de Salvador, na região dos Alagados. Filho de uma Ialorixá, mãe de terreiro de candomblé, que levava mungunzá para o abrigo mantido por Irmã Dulce, conhece outra de suas facetas emblemáticas: o ecumenismo. “Não pertence à Igreja Católica, é uma santa de todos”.

A canonização também precisa ter impacto financeiro. Até o final do ano, a OSID deve apresentar prejuízo operacional de R$ 8 milhões. A elevação à Santa ajudar a amenizar esse quadro. De acordo com Sérgio Lopes, assessor corporativo da Obra, as doações correspondem a cerca de 6% do orçamento anual - o restante é via SUS - mas com o crescimento da devoção, tendem a se multiplicar. Nem todas similares à realizada na semana passada pelo escritor Paulo Coelho, de R$ 1 milhão, mas certamente contribuirão para a perenidade da Obra. “Um dos nossos principais programas é o sócio-protetor, responsável por uma receita de R$ 10 milhões por ano. Ainda é precoce fazer uma estimativa, mas acredito que é possível dobrar esse valor. Temos um desafio de sustentabilidade muito grande, mas gosto de pensar na reação dela, não pelo título de Santa, mas pela possibilidade das pessoas fazerem mais pelo próximo.”

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