Isolamento afeta combate à violência doméstica na pandemia
Em março e abril, números de registros de agressões e abusos contra mulheres, idosos e crianças caíram em comparação com o mesmo período do ano passado. Temor é que haja subnotificação de casos.
Na saída de um trauma, a volta à normalidade é sempre mais lenta que a chegada do evento que a quebrou. A retomada gradual das atividades econômicas nesta fase ainda incerta de estabilização do número de casos de Covid-19 levará meses para ser concluída e, mesmo assim, cercada de cuidados. O mundo continuará limitado ao espaço físico da casa por um bom tempo, mesmo para os que trabalham fora e, depois do expediente, não podem circular pela cidade. Assim, deve-se cuidar tanto do ambiente privado quanto do público, porque é a partir do lar que se constrói o ser humano.
Assim como outros aspectos da vida cotidiana, do meio ambiente à educação, passando pela desigualdade social e mobilidade urbana, o combate à violência doméstica foi afetado pela pandemia. Dados da Secretaria de Defesa Social (SDS) mostram que, em março e abril deste ano, início da quarentena, foram registrados 5.664 crimes praticados contra mulheres em domicílios pernambucanos. Nesses dois meses, a polícia notificou 106 denúncias de agressões contra idosos com mais de 65 anos, enquanto foram prestadas 201 queixas de delitos sexuais que vitimaram crianças e adolescentes. As estatísticas de maio só devem ser concluídas pela SDS na próxima semana.
Os números representam quedas em relação ao mesmo período do ano passado, quando houve, respectivamente, 7.295, 127 e 354 registros. As reduções são significativas: 22,35% nos dados de violência contra a mulher; 16,5%, contra idosos; e 43,2%, contra menores de idade. Isso não indica, porém, que as manifestações desses tipos de violência estejam, de fato, diminuindo. O medo de encarar a rua em meio à pandemia e a intimidação constante do perigo na própria casa dificultam, quando não impossibilitam, a busca por ajuda. “Neste momento, essas vítimas estão trancadas com o agressor. E o isolamento potencializa o problema, que se levam anos para se romper”, afirma a defensora pública estadual Virginia Moury Fernandes, do Núcleo Especializado na Defesa da Mulher.
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Dois casos ocorridos em maio na Capital ilustram bem esse cenário descrito pela defensora. Em um deles, uma mulher em torno de 40 anos voltou a sofrer ameaças de morte do ex-companheiro, que tinha sido preso no início do ano por incendiar a casa onde moravam. Após denúncia à Justiça, o homem, que estava na condicional, foi levado novamente à prisão.
O outro é de uma senhora com pouco menos de 60 anos que aproveitou a hora de trocar o lixo no corredor do condomínio para pedir socorro à vizinha. O agressor era filho dela. O processo correu na Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). A juíza decretou medida cautelar, e o homem não pode mais se aproximar da mãe nem da residência, sendo monitorado por tornozeleira eletrônica. Também foi solicitado o envio periódico da patrulha Maria da Penha da Polícia Militar para verificar se a determinação tem sido cumprida.
Embora tratadas separadamente por órgãos da sociedade civil e dos poderes Executivo e Judiciário, devido às características particulares de cada uma, as três classificações de violência doméstica se misturam no dia a dia. “Não tem como você viver um contexto de violência e esse contexto ser restrito a uma única pessoa, principalmente quando existem filhos pequenos envolvidos nessa relação”, lembra Sandra Leite, coordenadora do Centro Sony Santos do Hospital da Mulher, que atende vítimas na unidade de saúde no bairro do Curado, no Recife. “Se ela mora com os pais, eles vão sofrer porque estão vendo. Se são filhos pequenos, vão sofrer não só pelo que presenciam, mas pela construção do caráter deles”.
Subnotificação e feminicídios
Apesar da constatação de que há menos registros de agressões a mulheres, os dois primeiros meses de coronavírus em Pernambuco apresentaram um aumento no número de feminicídios, crimes pelos quais as vítimas são assassinadas apenas pelo fato de serem mulheres, quando, por exemplo, morrem nas mãos de namorados, maridos ou ex-companheiros que se sentem donos delas. Este ano, foram 11 casos notificados, três a mais que em março e abril de 2019.
Gestora do Departamento de Polícia da Mulher (DPMul), a delegada Julieta Japiassu diz que, antes da pandemia, os registros de boletins de ocorrência cresciam ano a ano desde 2016. Esses acréscimos eram atribuídos a uma mudança de visão social sobre o problema. “A gente tem isso como maior conscientização da mulher, que vinha buscando cada vez mais seus direitos. E de repente se depara com essa redução”, avalia. Apesar disso, a gestora acredita ser cedo para afirmar que a queda nas denúncias de lesão corporal e outros delitos como injúria e ameaça é resultado de subnotificação. “É prematuro porque o aumento [no número de feminicídios] foi no segundo mês de isolamento, mas pode ser um indicador. A gente precisa dos meses seguintes para fazer essa avaliação”.
Entre as medidas tomadas para evitar a subnotificação, a Polícia Civil decidiu ampliar os tipos de delito que podem ser denunciados pela internet, sem que a vítima precise sair de casa para prestar queixa presencialmente na delegacia. Por enquanto, o boletim eletrônico só pode ser feito para crimes contra a honra, os de injúria, calúnia e difamação. “O ciclo de violência começa no xingamento, que é a injúria. Então, a mulher já pode registrar o primeiro ato de violência que sofreu. Mas esse tipo de caso depende da vítima. Se ela não denunciar e quiser dar prosseguimento ao inquérito policial, não verá o agressor punido”, explica a delegada Julieta Japiassu.
Para os casos mais urgentes, há outros canais, como o Disque 180, da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, e o 190, da Polícia Militar (veja na tabela abaixo). O reforço do acesso a esses serviços foi decidido em reuniões da Câmara Técnica de Enfrentamento à Violência de Gênero, composta por órgãos como o Ministério Público, a Defensoria e secretarias estaduais. Nesses encontros, também se solicitou ao Tribunal de Justiça a renovação das medidas protetivas. “Elas servem para evitar futuras violências. A gente precisa criar todo tipo de acesso, por telefone, mensagem, WhatsApp, para que a mulher entre em contato”, defende a defensora pública Virginia Moury Fernandes.
Com esse objetivo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação de Magistrados do Brasil (AMB) lançaram esta semana a campanha “Sinal Vermelho para a Violência contra a Mulher”, que, no Estado, conta com o apoio do TJPE e da Defensoria Pública. A ação, criada por meio da portaria 70/2020, permite que mulheres façam denúncias em farmácias a partir de um X vermelho escrito na palma da mão ou em um pedaço de papel. Ao identificar uma vítima, o atendente deve acionar a Polícia Militar ou a Guarda Civil Metropolitana.
Gargalo tecnológico
A diversidade de canais de diálogo que garanta o atendimento a todos os públicos é fundamental, sobretudo quando se considera a realidade de cada um deles. Vista em muitos aspectos como aliada, a internet pode ser um entrave para os idosos que sofrem violência. “Existe uma dificuldade de inserção na tecnologia. Isso é notável ainda mais agora com o incremento dos procedimentos criminais digitais. Se você pensar num contexto de pandemia em que a mulher adulta tem dificuldade de usar um telefone ou aplicativo para pedir socorro, imagine num cenário de violência doméstica contra uma pessoa idosa”, observa a titular da Delegacia do Idoso, Tereza Nogueira.
A falta de manejo das plataformas tecnológicas dificulta o registro de boletins eletrônicos, que solicitam ao denunciante dados que ele desconhece. Por isso, é comum que as vítimas dependam de algum amigo, parente ou vizinho para registrar a denúncia, o que se torna mais difícil no confinamento. “A gente vai precisar do número de telefone dele, das testemunhas e do suposto agressor, bem como o e-mail dele e de todas essas pessoas. O idoso, muitas vezes, não tem nem celular nem e-mail. Estou chocada com a baixíssima quantidade de informações nesse sentido”, avalia. Há três semanas à frente da delegacia, Tereza Nogueira abriu uma linha de telefone para incentivar os idosos a denunciarem, batizada de Rede de Apoio à Pessoa Idosa, que funciona apenas de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. Desde a criação do canal, no entanto, nenhuma ligação foi feita.
Público considerado grupo risco para a forma grave da Covid-19, o idoso torna-se vulnerável ao abandono pela família. E no recorte de gênero, as vítimas mais frequentes são mulheres. “A ideia de desvalorizar a pessoa idosa está ligada à crença comum nos países ocidentais, que pensam na valorização da pessoa associada ao que ela pode ainda contribuir para a sociedade. Se eu não ‘produzo’ nem estou disponibilizando um serviço, não sou mais necessária para essa sociedade e fico ali à margem”, analisa a delegada.
Alerta coletivo
No Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), o delegado Geraldo da Costa também percebeu uma queda na procura. Na visão dele, o medo de contrair a Covid-19 contribui para isso, já que as vítimas dependem de responsáveis para prestar queixa. “A maioria dos crimes acontece dentro de casa. Para a gente tomar conhecimento, precisa que o pai, a mãe, um tio, a avó ou até um professor ou um médico tragam essa notícia não só para a delegacia, mas para o Conselho Tutelar e Ministério Público”, afirma.
É o que também atesta a advogada Manuella Magalhães, do Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), organização que oferece assistência jurídica, psíquica e social a crianças e adolescentes. Atualmente, a instituição acompanha 200 processos criminais envolvendo vítimas com menos de 18 anos. “A violência contra a mulher também reverbera nisso. Meninos e meninas são abusados, mas acaba que as meninas sofrem mais”, comenta.
Outro público bastante vulnerável é o das crianças com deficiência, que podem ter dificuldade para verbalizar as agressões e abusos que sofreram. “É muito importante entender os sinais que ela está passando. Então, essa criança começa a não querer que ninguém lavasse as partes íntimas ou chorar quando se precisava fazer isso. Não tem uma receita de bolo, a criança modifica sua forma de agir”, exemplifica Magalhães.
Ainda segundo a advogada, uma das dificuldades mais presentes no enfrentamento a esse tipo de violência se dá pelo caráter privado com que se trata o assunto. Isso também explica o porquê de crimes dessa natureza, em maior parte, sejam registrados em bairros de periferia. “Existe uma cultura muito grande de que violência sexual e doméstica contra criança e adolescente a família resolve. Como são crimes cometidos em quatro paredes e as únicas testemunhas são a criança e o adulto que cometeu, é preciso ter confiança no que os filhos falam para poderem fazer o boletim de ocorrência. Às vezes, até acreditam, mas querem abafar para não prejudicar parentes. E a criança sai prejudicada”, ressalta Manuella Magalhães. “A classe mais pobre procura mais porque, na classe rica, as pessoas não denunciam por uma questão de cultura”.
Por tudo isso, em todas as violências, é preciso que as vítimas contem com o apoio da comunidade onde vivem. Vizinhos, familiares e amigos devem estar atentos aos sinais que elas emitem e que se mostram por mudanças súbitas de comportamento. E a primeira atitude que se deve tomar para incentivar as pessoas a falarem o que sofrem é ouvir e observar o outro.
Onde buscar ajuda
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – 180
Polícia Militar – 190
Ouvidoria da Mulher – 0800 281 8187
Ouvidoria Ministério Público – 127 ou (81) 98816.1901
Centro Clarice Lispector – (81) 3355.3008/9
Liga Mulher (Prefeitura do Recife) – 0800 281 0107
Departamento de Polícia da Mulher (DPMul) – (81) 3184.3569
Defensoria Pública do Estado – (81) 99488.2218/2217/3025
Rede de Apoio à Pessoa Idosa (Delegacia do Idoso) – (81) 99488.3478
Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA) – (81) 3184.3578/9
Centro Dom Hélder Câmara (Cendhec) – (81) 99746.0059
Serviços de referência às mulheres vítimas de violência
Recife
Wilma Lessa – Hospital Agamenon Magalhães
Pró-Marias – Cisam
IMIP
Sony Santos – Hospital da Mulher
Policlínica e Maternidade Arnaldo Marques
Maternidade Bandeira Filho
Unidade Mista Professor Barros Lima
Caruaru
Hospital Jesus Nazareno
Arcoverde
Hospital Ruy de Barros Correia
Serra Talhada
Hospital Professor Agamenon Magalhães
Salgueiro
Hospital Inácio de Sá
Petrolina
Hospital Dom Mala