Israel diz que resolução na ONU atrapalhou negociações com o Hamas; EUA chama alegação de 'injusta'
Netanyahu criticou Washington por não usar o poder de veto, acirrando o distanciamento entre os países; israelenses querem ''coordenação'' com americanos, diz pesquisa
Um dia depois do Conselho de Segurança da ONU aprovar uma resolução defendendo um cessar-fogo imediato em Gaza durante o mês sagrado do Ramadã, Israel manteve os ataques ao texto, e o ligaram a aprovação a mais uma rodada frustrada de negociações com o Hamas, voltadas a uma trégua duradoura e à libertação dos reféns.
Na noite de segunda-feira (25), o grupo terrorista rejeitou uma nova proposta feita durante conversas indiretas em Doha, mediadas por Egito, Catar e pelos EUA: em comunicado, o Hamas disse que o plano “não dava respostas às demandas básicas de nosso povo e de nossa resistência”, e reiterou que está firme em suas “posições originais”, citando a necessidade de um cessar-fogo imediato, o retorno da população civil às suas casas e uma “troca real de prisioneiros”.
Apesar do Hamas não ter encerrado nominalmente as conversas — o Catar disse que elas continuam em sua capital — o governo israelense ordenou o retorno de sua delegação, deixando em solo catariano apenas alguns integrantes do Mossad, o serviço de inteligência nacional do país, e culpou o que chamou de “fracasso” à aprovação da resolução da ONU.
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“A posição do Hamas claramente demonstra seu amplo desinteresse em um acordo negociado e confirma o dano causado pela resolução do Conselho de Segurança da ONU”, afirmou, em comunicado, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. “O Hamas mais uma vez rejeitou uma proposta de compromisso dos EUA e repetiu suas demandas extremas: um fim imediato à guerra, a retirada militar completa de Israel da Faixa de Gaza e sua permanência à frente da administração, para que possa repetir, sempre, o massacre de 7 de outubro [de 2023], como prometeu fazê-lo.”
Após uma série de vetos a projetos de resolução sobre Gaza — inclusive um apresentado pelo Brasil, em outubro do ano passado —, os EUA se abstiveram na votação de um texto defendido pelos dez membros não permanentes do Conselho nesta segunda-feira.
A proposta determina um cessar-fogo imediato, que deve durar pelo menos até o fim do mês sagrado do Ramadã, no dia 9 de abril, além do retorno imediato dos cerca de 130 reféns que ainda estão em Gaza e a entrada de ajuda humanitária no enclave palestino. Além da abstenção dos EUA, o texto foi aprovado pelos demais 14 países que integram o órgão da ONU.
A resposta israelense foi imediata, e teve como principal alvo de críticas os EUA, responsáveis por uma ajuda anual de cerca de US$ 3,3 bilhões ao país. Em entrevista à Rádio do Exército, Israel Katz, chanceler de Israel, disse que Washington cometeu um “erro moral e ético” ao permitir a aprovação.
— O Hamas está trabalhando com o fato de que haverá um cessar-fogo sem que precise fazer nada — disse Katz, nesta terça-feira. — Isso foi uma mensagem a todos do lado do Hamas de que os EUA não apoiam Israel tanto assim.
Além de palavras, os israelenses cancelaram a visita de dois conselheiros de Netanyahu a Washington — o conselheiro de segurança nacional Tzachi Hanegbi e o integrante do Gabinete de guerra Ron Dermer —, na qual discutiriam alternativas a uma iminente ofensiva contra Rafah, no Sul de Gaza, hoje lar de centenas de milhares de refugiados internos. Ao comentar a decisão, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, disse que a Casa Branca ficou “muito decepcionada” .
Já nesta terça, Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado, disse que era “injusta” a alegação israelense de que a aprovação da resolução no Conselho de Segurança foi a responsável por mais uma frustrante rodada de conversas em Doha.
— Essa declaração [de Netanyahu], que creio ter dito que o Hamas se retirou das negociações sobre os reféns, ou que o Hamas rejeitou a mais recente proposta por causa da resolução do Conselho de Segurança da ONU, ela é incorreta sobre praticamente todos os aspectos, e é injusta com os reféns e suas famílias — disse Miller.
Distanciamento
As críticas, cancelamentos e discursos depois da votação de segunda-feira expõem o crescente distanciamento entre EUA e Israel sobre a guerra em Gaza. Ao contrário do apoio total das primeiras semanas de conflito, a Casa Branca tem adotado um tom mais crítico, relacionado à grave situação humanitária no território palestino, à ofensiva em Rafah ao que Washington vê como falta de planos para o pós-conflito.
Ao mudar de posição na ONU, o governo de Joe Biden parece ter dado um passo além: segundo a CNN, citando fontes diplomáticas, a ideia inicial era vetar o texto, mas houve negociações intensas nos bastidores e mudanças no rascunho inicial, como a inclusão da questão dos reféns e a retirada da menção a um “cessar-fogo permanente”, substituída por “cessar-fogo duradouro”.
Apesar da Casa Branca não mencionar publicamente o tema, a mudança também pode estar ligada às eleições de novembro, ainda mais depois de setores da base de apoio de Biden sinalizarem que poderiam não sair para votar no presidente por causa da posição dele sobre o conflito — nesta terça, Biden voltou a ouvir protestos durante um comício na Carolina do Norte, e dessa vez pediu paciência, afirmando que "eles têm um ponto", e que "precisamos fazer muito mais para levar ajuda a Gaza".
— Biden fez tudo que podia por meses para evitar uma grande briga em público — disse ao Washington Post Frank Lowenstein, um ex-funcionário do Departamento de Estado que participou de negociações entre israelenses e palestinos em 2014. — Isso reflete uma séria mudança na posição da Casa Branca sobre como lidar com os israelenses até o fim da guerra. Os israelenses ou vão prestar atenção agora, ou seguiremos nessa linha.
Perda de apoio
Ainda sobre percepções internas, uma pesquisa divulgada nesta terça-feira revelou uma alta no número de israelenses que defende a coordenação com o governo dos EUA em temas estratégicos: segundo os números do Instituto Israelense de Democracia, 43% dos entrevistados concordam com essa posição, contra 38% em janeiro. O percentual é maior entre a população árabe — 63%. Sobre a performance de Netanyahu, apenas 28% dos entrevistados aprovam o governo do premier, enquanto o chefe das Forças Armadas, Herzi Halevi, teve o trabalho considerado ótimo ou bom por 48% dos entrevistados.
Mesmo antes da guerra, Netanyahu passava longe de ser um líder popular, e foi alvo de meses de protestos relacionados aos seus planos de reforma do sistema judicial. Após os ataques de outubro de 2023, que deixaram 1.130 mortos no país, passou a ser cobrado por ações contundentes para trazer os reféns de volta para casa, um tema que ainda motiva milhares de pessoas a saírem de casa para criticar seu governo nas ruas.
— Em breve celebraremos a Páscoa, o feriado da liberdade, mas qual liberdade? De qual liberdade estamos falando? Elas estão passando por tantas coisas, dói só de imaginar. Uma mulher nos contou o que passaram lá, o que está acontecendo com as outras 19 — disse Ayala Metzger, enteada de um dos reféns, à Kan TV, durante um protesto em Tel Aviv nesta terça-feira. — Eu me dirijo ao primeiro-ministro. É sua responsabilidade, Netanyahu, trazê-los para casa, não importa o preço.