Jacarezinho lida com insônia e flashbacks após operação com 28 mortos
Agora, o desejo de se mudar do Jacarezinho é comum entre crianças e adultos
Bastou ouvir a palavra "operação" que os olhos da ambulante Cristiane, 28, já se encheram de lágrimas. Arrastando seu carrinho com café e lanches por uma das esquinas estreitas do Jacarezinho, ela parou, baixou os olhos, balançou a cabeça e sussurrou que não tinha condições de falar.
Toda vez que ela passa na viela, vem à cabeça a cena dos corpos espalhados pelo chão. Foram cerca de quatro perto da sua casa. Ao olhar para cima, volta também a visão dos traficantes pulando as lajes enquanto um deles quebrava o braço, ensanguentado.
Dez dias após a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, que deixou 28 mortos na favela, incluindo um agente, os moradores lidam com "flashbacks" de momentos de terror, insônia e sustos com qualquer barulho repentino.
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"O gato pula na telha, a gente já fica desesperado", diz João, que, como muitos que moram há anos na comunidade, nunca havia vivido uma operação parecida com essa. Todos os nomes nesta reportagem foram trocados a pedido dos entrevistados, por medo de retaliações.
Na mesma rua de Cristiane, o pai de uma menina de nove anos que presenciou uma das mortes em sua própria cama, ensopada por uma poça de sangue, também se afastou quando avistou os repórteres e disse cabisbaixo que a família "ainda está muito abalada".
Um suspeito baleado no pé entrou na casa para se esconder naquela manhã e, meia hora depois, seguindo o rastro de sangue, um policial arrombou a porta. A garota estava atrás do pai quando, afirma ele, o agente atirou. "Vão matar a gente?", questionou ela.
Agora, o desejo de se mudar do Jacarezinho é comum entre crianças e adultos. "Os meus pequenos querem ir embora", diz a mãe de um dos mortos, Richard Gabriel Ferreira, 23, e de mais três filhos. Dormindo sob efeito de remédios, ela conta que não quer nem pensar em ouvir um suposto áudio em que seu filho afirma se render antes de morrer.
Não tão longe dali, num sobrado onde sete criminosos teriam sido baleados e mortos com uma família ao lado, segundo vizinhos, já não sobrou ninguém. Com medo, os parentes saíram no mesmo dia da comunidade e nunca mais voltaram.
Uma dessas vizinhas, que teve a casa invadida por esse grupo de bandidos minutos antes da saraivada de tiros, diz que ainda não consegue olhar pela janela. "Eu olho assim a porta fechada e tenho a sensação de que os meninos estão lá dentro. Tinha sangue por todo lado", diz.
Outra vizinha desse mesmo imóvel conta que os confrontos na favela são tão frequentes que seu filho de sete anos já "está pronto para a guerra". "Minha mãe estava desesperada no chão e ele disse 'vó, calma, já vai passar'", ela narra.
Segundo o pedagogo Reinaldo Nascimento, os sintomas mais comuns nas crianças depois do trauma são sinais de medo, tristeza, dor de barriga e de cabeça, prisão de ventre, ansiedade, taquicardia, dificuldade para se concentrar ou dormir e pesadelos.
Ele é um dos fundadores da associação Pedagogia de Emergência, que ajuda meninos e meninas a retomarem a vida em locais com guerras e catástrofes, como Iraque ou Faixa de Gaza, com atividades lúdicas. Também treina professores e dialoga com pais.
"Mesmo as crianças que não presenciaram absorvem o medo e a insegurança dos adultos. Elas precisam de um espaço seguro, uma rotina, vínculos fortes e experiências bonitas, como pintar uma parede que está toda furada de bala, por exemplo", ele sugere.
Em um momento de pandemia, Nascimento lembra que superar o choque poderá ser ainda mais difícil. "Os familiares perderam o emprego, têm dificuldades para se alimentar, as aulas são parcialmente remotas, e as crianças acabam não tendo um lugar que transmita a sensação de normalidade."
Ele alerta que, sem um ambiente seguro, os traumas podem evoluir para doenças como depressão, síndrome do pânico, transtorno do estresse pós-traumático e, em casos mais extremos, mudança de personalidade. "É quando a vítima se torna o agressor."
A estudante Gabriela, 22, diz que o dia da operação foi um dos "top três piores de sua vida". Com um filho de dois anos, ela acordou com a notícia de que um policial, o inspetor André Frias, havia sido atingido a cerca de 100 metros de onde mora e de que o número de mortos não parava de subir.
Por volta das 9h30, escutou os agentes entrando nas casas dos vizinhos. A primeira reação do seu marido, que é negro, foi vestir o uniforme de zelador e pegar a carteira de trabalho na mão. Ficaram os dois assim, de pé na sala, só esperando a polícia chegar.
Um policial encaixou um pé de cabra na sua porta de metal, uma vizinha gritou que "era casa de morador" e ele respondeu "estou te perguntando alguma coisa?", relata. Abriu a estrutura num golpe, perguntou se tinha alguém ali, olhou a carteira de trabalho e saiu.
"Pelo olhar dele eu entendi a proporção do que estava acontecendo, era um olhar de ódio, de morte. Me arrepia só de lembrar", ela diz.
Acabou perdendo o emprego numa loja porque a chefe queria que ela saísse para trabalhar em meio ao tiroteio, e agora tem que arranjar outro jeito de pagar a faculdade de gastronomia.
Mas Gabriela pegou toda a tristeza e a indignação que sentiu e transformou numa rede de apoio às mães dos mortos neste 6 de maio. Dois dias depois, criou a página "Abrace uma Mãe", com vídeos de conforto e que está oferecendo ajuda psicológica e jurídica às mulheres que precisarem.
Na página, uma amiga que diz ter visto parte dos horrores desabafa em anonimato: "Eu estou desesperada até agora, não consigo comer nada. Meu corpo e minha alma doem até agora", ela escreve. "Só queria conseguir esquecer esse dia ruim."