"Justiça ainda é branca, masculina e classe média alta", diz 1ª desembargadora negra do DF
Não chega a 15% a parcela de negros entre os magistrados no Brasil. Nas instâncias superiores, índice é ainda menor
A desembargadora Maria Ivatônia Barbosa foi a primeira negra a assumir esse cargo no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) em 2019. Ela vê um caminho longo para que a igualdade seja alcançada nos tribunais brasileiros. Somente 14,5% dos magistrados são negros, entre os desembargadores, a parcela cai para 9,7%.
Em entrevista ao Globo, por e-mail, Maria Ivatônia fala dos episódios de discriminação, a falta do reconhecimento do racismo no Judiciário e das barreiras aos negros. Ao que querem seguir na carreira, dá um conselho:
"Agregue-se; forme redes de apoio. Sirva de apoio e usufrua do apoio necessário ao necessário prosseguir. Não desistir. Resistir."
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Como foi essa trajetória, a escolha da carreira, as dificuldades que enfrentou para ascender na magistratura
Pai e mãe professores; cidade pequena, interior do Estado do Tocantins. Vinda muito jovem para Goiânia, vestibular. Dificuldades financeiras. Necessidade de trabalhar. Ciente de que a única possibilidade (não era propriamente opção) era estudar. E muito. Sempre entendi que minha única chance era não somente me destacar; mas me destacar muito, o que era muito difícil, considerando que o tempo para estudar era muito pouco (e isto significava noites em claro), e já perdia de longe para a média branca, que, além de ter frequentado as melhores escolas, podia comprar livros (o que sempre foi um sonho caro), conseguir estágios, e por aí vai.
Escolher a carreira foi interessante...muito jovem, ouvi uma brilhante economista em entrevista na TV...pronto: seria economista. Depois, recebi um cartão postal de uma tia enfermeira que fazia uma especialização em Berlim. Resolvi ser enfermeira poderia me levar a Berlim e a outras cidades da Europa. Depois, assisti a um júri; e minha resolução final foi tomada. Direito e concurso para a magistratura.
O TJDFT é um tribunal diferenciado. O Distrito Federal é uma pequena e diferenciada unidade da federação e somos poupados de muitas dificuldades que os colegas enfrentam nos estados. Somos juízes da União. Sofremos menos interferências de outros poderes constituídos. Também por isto ascender na magistratura no TJDFT pode não significar os grandes desafios enfrentados em outras unidades da federação.
Já foi discriminada ou ouviu comentários racistas e discriminatórios durante sua carreira?
Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, diz com muita propriedade: “não se é negro impunemente”. Então, claro. Nenhum(a) negro(a) está a salvo. Somos “muito naturalmente” discriminados, alvos de piadinhas racistas ou, no mínimo, nomeados como, exemplificativamente, a “menina moreninha juíza”.
A discriminação pode tomar a forma de silêncio, da mais absoluta indiferença. O “silêncio gelado”, que significa a resposta recebida a algum comentário ou atitude que signifique denúncia de prática racista, discriminatória.
Ou a atitude condescendente, que, normalmente, traduz-se no sorriso que se pretende simpático, seguidos daqueles comentários (uma das maiores armadilhas contra nós, negros) “você se fez por seus próprios méritos”... o famoso “pacto narcísico da branquitude”.
Tem percebido aumento da presença negra no Judiciário?
Não se pode negar o aumento na composição. Hoje, uma média de 15%. Mas é evidente que a Justiça ainda é branca, masculina e classe média alta. É desse lugar que fala o juiz no Brasil.
As cotas no Judiciário têm tido efeito semelhante ao que aconteceu nas universidades?
Ainda não. Aparentemente, a academia tem tido mais sucesso (ainda que muitos e importantes avanços sejam necessários) na prática democrática de combate ao racismo. Se se perguntar: “há racismo no Brasil?”, a tendência é a resposta positiva.
Mas perguntar “você se considera racista?” significa, evidentemente (digo isto com muita tristeza...), uma resposta negativa.
O Judiciário ainda não se assumiu racista. Resiste a temas como “julgamento com perspectiva de gênero, de raça...”. E parece ter ainda muita dificuldade de interpretar leis instituidoras de práticas e políticas afirmativas em editais de concursos públicos.
Barreiras para negros estão na origem e em relação a qualquer carreira que não seja típica de servidão.
Quais são as barreiras para os negros no Judiciário: a entrada, a ascensão, a formação?
Barreiras para negros estão na origem e em relação a qualquer carreira que não seja típica de servidão. Mas os principais são: não acesso a ensino fundamental, médio e superior de qualidade, impossibilidade de arcar com os custos de acesso a cursos preparatórios e de pós-graduação e de se dedicar aos estudos preparatórios.
Como é trabalhar e ver poucas pessoas negras ao lado, sente uma espécie de solidão?
Absoluta solidão. Por isto, integrar o grupo Juízas e Juízes Negr(a)os significa o oásis necessário, a fonte que ameniza a sede e fortifica o espírito. No nosso 6º encontro nacional, que se inicia dia 22 de novembro, iremos lembrar “de onde viemos e visões para o futuro”, iremos refletir sobre “o racismo e o colonialismo como fundadores da nação brasileira”, discutir o “resistir para (re)existir: estratégias de luta e de permanência da população negra no Brasil”, “ações afirmativas como estratégia de transformação dos espaços e poder”, “O corpo negro – o direito à vida, à terra e à cidade”, tudo culminando para o encerramento “Nossos passos vêm de longe”!
Quais conselhos daria a quem deseja entrar no Judiciário?
Primeiro: não é favor, nem benevolência. É direito seu exigir o que é seu de direito.
Segundo: não está certo, não está escrito em lugar nenhum e nem pode ser-me exigido passar por atitudes extremadas de sofrimento e de superação para ser, de fato, titular de direitos fundamentais à vida, à dignidade, à equidade, à Justiça.
Terceiro: agregue-se; forme redes de apoio. Sirva de apoio e usufrua do apoio necessário ao necessário prosseguir. Não desistir. Resistir.