Guerra

Líbano: Uma nação que vai de tragédia em tragédia

Mais um capítulo do drama de meio século desde a guerra civil, conflito entre Israel e Hezbollah acentua grave crise econômica que jogou quase metade dos libaneses na pobreza

Novos bombardeios israelenses no LíbanoNovos bombardeios israelenses no Líbano - Foto: Rabih Daher/AFP

Às 18h07 de 4 de agosto de 2020, o tempo parou em Beirute. Naquele instante, o que era apenas um incêndio em um depósito no porto para o qual fora enviada uma equipe de oito bombeiros e um paramédico transformou-se, em um milissegundo, na maior explosão artificial não nuclear da História.

As 2.750 toneladas de nitrato de amônia que foram pelos ares levaram consigo 218 vidas, feriram mais de 7 mil pessoas e deixaram de joelhos um Líbano já curvado por uma das mais graves crises econômico-financeiras mundiais desde meados do século XIX.

Quase uma metáfora para um país que no último meio século enfrentou uma guerra civil (1975-1990), uma ocupação síria (1976-2005), uma invasão israelense (1982-2000), uma guerra entre Israel e o grupo xiita Hezbollah (2006) e o sequestro e renúncia forçada de seu premier (2017) por um governo estrangeiro, o da Arábia Saudita.

Quatro anos depois, o Líbano vive agora outro momento definidor de sua trajetória como Estado-nação, iniciada em 1943 com o fim do mandato francês.

Palco de um novo enfrentamento entre Israel e o Hezbollah que já deixou mais de mil mortos em poucos dias e arrisca transformar-se numa ampla guerra regional, o país vê seus esforços para escapar da devastadora crise econômica em que mergulhou em 2019 ameaçados de virar escombros.

A mais recente descida do Líbano ao “inferno”, como classificou dias atrás o secretário-geral da ONU, António Guterres, foi precedida cinco anos atrás pelo equivalente econômico de uma guerra: o desmoronamento da economia no rastro da crise financeira que fez o PIB despencar de US$ 54,9 bilhões (R$ 298,9 bilhões) em 2018 para US$ 17,9 bilhões (R$ 97,5 bilhões) no ano passado e jogou 43% de sua população na pobreza.

A dona de casa Rosine Abou Nassif, de 72 anos, é um dos rostos da crise libanesa. Moradora do bairro de classe trabalhadora de Ain El Remmaneh, em Beirute, ela relata que a pensão do marido, militar reformado, equivalia a US$ 800 (R$ 4.350) antes da crise e agora não passa de US$ 190 (R$ 1.034). O casal sobrevive com a ajuda de parentes que mandam dinheiro do exterior.

— Não conseguimos nos manter — disse ela ao jornal libanês The National, em maio.

A guerra só veio para piorar a situação. Mesmo antes do conflito, os libaneses enfrentavam escassez crônica de energia, com a estatal Electricité du Liban fornecendo só 15 ou 16 horas por dia de eletricidade. Agora, várias áreas só conseguem energia por até 4 horas por dia. E com centenas de milhares de pessoas em fuga do sul, os preços das acomodações já estão subindo.

— As pessoas, que já estavam em dificuldade, terão ainda menos oportunidades de ganhar dinheiro. E se a guerra piorar, haverá um aumento de preços, as pessoas terão de pagar mais por itens essenciais — disse ao GLOBO, de Beirute, o pesquisador-sênior David Wood, do International Crisis Group. — Quanto mais isso continuar e mais destruição causar, mais vai custar para reconstruir, e não sabemos de onde virão os recursos.

Embora o barril de pólvora que era o sistema financeiro libanês tenha explodido só em outubro de 2019, levando a protestos que derrubaram o governo, o rastilho foi acendido bem antes.

A roda da fortuna movimentada pelas elites políticas e econômicas girava em torno de um esquema semelhante ao de pirâmide em que bancos privados — 18 dos 20 maiores deles com participação acionária de 40% de figuras da cúpula governante — emprestavam a juros altos ao Banco do Líbano (BDL), o Banco Central do país.

Desde os anos 1990, com o fim da guerra civil, os governos embarcaram em pesados gastos públicos, acompanhados do setor privado, na reconstrução, tendo como pano de fundo corrupção alta e regras frouxas de governança.

Os déficits fiscais eram cobertos pelo BDL. De US$ 4,4 bilhões (R$ 23,91 bilhões) em 1993 (56% do PIB), o déficit foi para US$ 50,2 bilhões (R$ 272,78 bilhões) em 2019 (150,4% do PIB).

Ao longo de boa parte do período, os rombos eram cobertos pelo capital vindo do exterior na forma de remessas da diáspora libanesa, de assistência das nações do Golfo Pérsico e do turismo, uma das principais indústrias do Líbano.

No entanto, fatores como a guerra entre Israel e o Hezbollah em 2006, o poder cada vez maior do grupo xiita aliado do Irã, afastando as monarquias sunitas do Golfo, e a crescente disfuncionalidade do sistema político sectário libanês — em que o poder é dividido entre as muitas comunidades religiosas, sendo cristãos maronitas, muçulmanos sunitas e xiitas as maiores — foram secando algumas fontes, pondo o sistema em xeque.
O colapso veio em outubro de 2019. A explosão do porto de Beirute, em 2020, só jogou mais lenha na fogueira, acarretando prejuízos calculados em US$ 8 bilhões (R$ 43,5 bilhões) pelo Banco Mundial.

Cinco anos depois, o país continua no atoleiro: além da pobreza generalizada, a inflação anualizada, que bateu 268% em abril de 2023, ainda está em 35%; e a libra libanesa, cotada por 25 anos em 1.509 por dólar, está em torno de 89.500 por dólar.

Apesar da tragédia, as elites políticas são incapazes de chegar a consensos mínimos para fazer reformas — há um empréstimo de US$ 3 bilhões do Fundo Monetário Internacional à espera — e iniciar a recuperação econômica para valer. Nessa paralisia, o país está desde outubro de 2022 sem presidente, e tem um governo interino desde o pleito de maio de 2022, quando bloco algum obteve maioria no Parlamento.

— As elites políticas e financeiras têm medo de aprovar reformas que vão mudar completamente o sistema que elas construíram desde a guerra civil e funcionou por 30 anos, mesmo ele tendo entrado em colapso — disse David Wood. — Tudo se resume a interesses egoístas próprios em vez de considerar os interesses nacionais do Líbano.

Estado fracassado

Segundo o pesquisador, o Líbano já pode ser considerado um Estado fracassado, no sentido de que seus cidadãos não contam com o governo para prover muitos serviços básicos. Para ele, é preciso ocorrer algo que faça com que as elites governantes mudem seus cálculos e decidam que devem aprovar reformas. Mas sua previsão não é otimista.

— O desfecho mais provável é que continuem com essa estratégia de evitar reformas, e o Líbano vai se tornar um país cada vez mais fraco com uma economia cada vez mais fraca.

Há também o fator externo. O perene estado de hostilidade entre Israel e Hezbollah é uma espada de Dâmocles eternamente pendurada sobre o Líbano: a guerra de 2006 custou ao país US$ 6,75 bilhões (R$ 36,67 bilhões) e uma queda de 5% na economia. Só um acerto entre as duas partes pode liberar o Líbano para desenvolver plenamente seu potencial. Para Nimrod Goren, presidente do Instituto Israelense para Política Externa Regional, é possível chegar a um entendimento para resolver as disputas territoriais entre Israel e Líbano na fronteira.

— Houve um acordo com o Estado libanês, e aval do Hezbollah, anos atrás sobre as questões de fronteira marítima. Com sorte, o mesmo pode ocorrer com a terrestre. Esta disputa é uma das razões do Hezbollah para lutar contra Israel — disse Goren ao GLOBO. — Não espero um acordo entre Israel e o Hezbollah, mas o objetivo é alcançar um entendimento entre Israel e o Líbano e fazer israelenses e libaneses terem um futuro juntos.

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