Lula e Lava Jato usam argumentos parecidos, mas em direções opostas
Os debates no Judiciário sobre a integridade desses dois conjuntos de provas opõem e aproximam os dois adversários mais ferrenhos da operação deflagrada no Paraná
Em um ponto argumentos da força-tarefa da Lava Jato e da defesa do ex-presidente Lula parecem convergir em seus argumentos ao STF (Supremo Tribunal Federal): o uso de arquivo eletrônico como prova não pode ocorrer se não houver garantias amplas de que ele não foi adulterado ou editado de alguma forma.
A divergência entre as duas partes, porém, aparece dependendo de qual arquivo eletrônico se estiver falando.
Se for o pacote com mensagens hackeadas do celular do procurador Deltan Dallagnol, os advogados de Lula não levam esse fator em consideração, mas a força-tarefa, sim.
Já se o tema da discussão for os dados dos sistemas eletrônicos de contabilidade de propinas da Odebrecht, anexados como prova contra o petista em Curitiba, os papéis se invertem: Lula acha que o arquivo pode ter sido violado, enquanto os procuradores rechaçam essa hipótese.
Os debates no Judiciário sobre a integridade desses dois conjuntos de provas ao mesmo tempo opõem e aproximam os dois adversários mais ferrenhos da operação deflagrada no Paraná.
Curiosamente, tanto a validade como prova dos sistemas da Odebrecht quanto a das mensagens estão sendo motivo de debates no Supremo em uma mesma reclamação (tipo de recurso apresentado diretamente à corte), na qual o relator é o ministro Ricardo Lewandowski.
A defesa de Lula até anexou diálogos dos procuradores para reforçar sua hipótese de que pode ter havido violação ao sistema eletrônico da empreiteira.
No caso dos arquivos da Odebrecht e também no pacote de mensagens no aplicativo Telegram as partes questionam a chamada "cadeia de custódia" desses arquivos.
A cadeia de custódia é o histórico documentado de armazenamento, manuseio e transferência de provas, que atesta que os elementos apresentados foram devidamente preservados ou se houve adulteração em algum momento.
A defesa do ex-presidente tenta desqualificar o sistema de pagamentos da Odebrecht para enfraquecer a tese acusatória em uma ação penal na qual ele é acusado de receber como propina um terreno em São Paulo onde funcionaria a sede do Instituto Lula.
Esse processo tramita em Curitiba desde 2016, sem definição. Ordem do ministro do STF Edson Fachin, que anulou sentenças no último dia 8, estabelece que o caso precisará voltar a tramitar desde seu início na Justiça Federal no DF. A decisão de Fachin será julgada pelo plenário do Supremo no próximo dia 14.
"No que tange à cadeia de custódia, os documentos apresentados [pelo Ministério Público Federal] são completamente insuficientes para confirmar que os elementos apreendidos pelas autoridades estrangeiras são exatamente os mesmos analisados pelos peritos da Polícia Federal", escreveram os advogados de Lula em petição apresentada no fim do ano passado.
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Já em relação às mensagens hackeadas, dois advogados contratados por Deltan e outros seis procuradores que integraram a força-tarefa disseram em petição, também no Supremo, em fevereiro: "Não houve qualquer demonstração de integridade/autenticidade dos materiais, nem de sua cadeia de custódia, sendo certo, portanto, que tais arquivos, por não terem sido periciados anteriormente à apreensão, são completamente desprezíveis do ponto de vista jurídico".
Procuradas pela reportagem, a defesa de Lula e a força-tarefa rechaçaram semelhanças entre as duas situações.
Até agora, a defesa de Lula tem tido mais vitórias nesses dois embates. Após decisão do STF, os advogados do petista conseguiram acessar em janeiro o arquivo eletrônico das mensagens hackeadas em 2019 no celular de Deltan e tem trazido a público mais detalhes das conversas que indicam colaboração do ex-juiz de Curitiba Sergio Moro com os investigadores.
A ordem foi expedida por Lewandowski, que determinou o compartilhamento com Lula das mensagens que lhe dissessem respeito, direta ou indiretamente, e que tinham sido apreendidas na Operação Spoofing, que investigou e prendeu os suspeitos de hackear celulares de autoridades.
Na decisão, o ministro citou o direito à ampla defesa e disse ver verossimilhança em seus argumentos.
O direito de Lula de acessar esses arquivos foi mantido em sessão da Segunda Turma da corte no dia 9 de fevereiro, com os votos favoráveis de mais três ministros.
A defesa dos procuradores afirmou ao Supremo que não há como atestar que o material apreendido com os hackers corresponde àquilo que foi digitado por eles no aplicativo Telegram e que eventual perícia seria perda de tempo.
Parte dessas mensagens foi obtida primeiramente pelo site The Intercept Brasil e teve seu teor publicado posteriormente também por outros veículos de imprensa. Ao longo de dezenas de reportagens, nunca foi apontado nenhum indício de adulteração ou de edição no conteúdo dos diálogos.
Já em relação aos arquivos eletrônicos da Odebrecht, os procuradores afirmam que houve um "alentado trabalho pericial" da PF que assegurou a idoneidade desse material na ação penal que envolve Lula e a empreiteira.
O ex-presidente, no entanto, contratou uma perícia particular que, diz, "indicou claramente, a quebra da cadeia de custódia das mídias onde estariam acauteladas cópias dos 'sistemas' da Odebrecht".
Lewandowski também levou em conta essa argumentação do petista e determinou no ano passado que a defesa do ex-presidente tivesse total acesso aos arquivos do acordo de colaboração da Odebrecht, o que inclui os dados dos sistemas de pagamentos guardados pela Polícia Federal.
Em sessão no Supremo em fevereiro, o ministro leu trechos de diálogos de procuradores, hackeados em 2019, e citou uma menção a suposto transporte do material em sacolas de supermercado.
Para ele, isso reforça que os arquivos da empreiteira foram manuseados sem os devidos cuidados pelos procuradores, em linha com o que diz a defesa do ex-presidente.
O argumento da falta de confiabilidade como prova desses registros contábeis da empreiteira foi repetido na Justiça Eleitoral de São Paulo pela defesa do ex-governador tucano Geraldo Alckmin, que se tornou réu no ano passado em ação sobre suposto caixa dois pago pela empreiteira nas eleições de 2010 e 2014.
OUTRO LADO
Procurada pela reportagem, a defesa do ex-presidente Lula disse que questiona a quebra da cadeia de custódia dos sistemas da Odebrecht desde 2017 "com base em fatos revelados ao longo do processo".
"Peritos da Polícia Federal também reconheceram durante reunião com o perito Claudio Wagner, constituído pela defesa do ex-presidente Lula, que foi gravada com a ciência e a anuência de todos os presentes, que o arquivo foi 'mexido' antes de ter sido entregue à 'Lava Jato'", disse o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende o petista.
Ele afirmou ainda que as cópias dos sistemas "jamais foram comparadas com a via original que está na Suíça".
Já sobre as mensagens dos procuradores, Zanin disse que se trata de um material íntegro, "obtido pela Polícia Federal diretamente com a pessoa que admitiu ter feito o hackeamento e cujo conteúdo já foi confirmado por procuradores, por peritos, apresentadores de TV que foram referidos nos diálogos, além de diversos jornalistas, inclusive da Folha de S.Paulo, que analisaram os documentos".
A reportagem também ouviu a força-tarefa, que disse que o "debate sobre cadeia de custódia nessas duas situações não é comparável".
"Ainda que o uso da expressão 'cadeia de custódia' de arquivos eletrônicos possa dar a impressão que se trata de questões semelhantes, há, na verdade, realidades opostas. A defesa do ex-presidente tenta desqualificar prova regularmente produzida por autoridades, dentro de autos públicos, submetida à ampla defesa e ao contraditório", disseram os procuradores, em nota.
Já as mensagens, afirmam eles, são provas ilícitas porque "não foram obtidas por autoridades junto ao aplicativo Telegram ou no bojo de procedimentos legais". "Ao contrário, foram obtidas por terceiros, hackers que incluem confesso estelionatário, contumaz violador de normas penais, com interesses ocultos."
No comunicado, os procuradores também listaram o histórico de extração dos dados dos sistemas Drousys e MyWebDay, da Odebrecht, e disseram que a PF "fez meticulosa análise em extenso laudo que confirmou a integridade" dos arquivos. Também mencionaram avaliação da Procuradoria-Geral da República.