Mais de 17 mil menores estão desacompanhados em Gaza, e reuni-los com as famílias é quase impossível
Milhares de menores perderam pais e parentes próximos desde o início da guerra, em outubro de 2023, e histórias de sucesso são raras
Em uma guerra que matou 45 mil pessoas desde outubro de 2023 e provocou um dos maiores êxodos internos na História recente, as crianças e adolescentes de Gaza são a face mais cruel de um conflito que devastou famílias inteiras. De acordo com o Ministério da Saúde do enclave, 17,4 mil deles morreram, e outras 17 mil, segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), foram separados de seus responsáveis e parentes próximos, sujeitas a abusos, mais violência e exploração. A tarefa de levar esses menores até um lar conhecido não é nada simples.
— Famílias são torturadas pela incerteza do paradeiro de seus entes queridos. Nenhum pai deveria ter que cavar em escombros ou valas comuns para tentar encontrar o corpo de seu filho — afirmou Jeremy Stoner, diretor regional da ONG Save The Children para o Oriente Médio. — Nenhuma criança deveria ficar sozinha, desprotegida em uma zona de guerra. Nenhuma criança deveria ser detida ou mantida refém.
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Muitos dos menores que vagam pelo enclave em ruínas são os únicos sobreviventes de ataques aéreos contra casas, acampamentos e prédios. Segundo uma representante da organização Médicos Sem Fronteiras, em declarações à BBC, uma sigla específica foi criada em Gaza, WCNSF ("Criança ferida, sem família sobrevivente”, em inglês), diante da quantidade de casos do tipo.
— Das 12 crianças que conheci e entrevistei, mais da metade delas perdeu um membro da família nesta guerra. Três perderam um dos pais, dos quais dois perderam a mãe e o pai — afirmou, em briefing à imprensa, em fevereiro de 2024, o chefe de comunicação do Unicef para a Palestina, Jonathan Crickx, que havia visitado Gaza. — Em um centro onde crianças desacompanhadas são acolhidas e cuidadas, também vi duas crianças muito pequenas de 6 e 4 anos. Elas são primas e suas respectivas famílias inteiras foram mortas na primeira quinzena de dezembro [de 2023].
De acordo com números da ONU, 40% da população de Gaza não têm mais documentos, incluindo as crianças que chegam aos hospitais com ferimentos graves e sozinhas.
— Seu rosto não estava visível e ninguém o reconheceu. Ele não tinha nome — disse à rede al-Jazeera Nour Lafi, uma enfermeira do Hospital Europeu, ao se lembrar do caso de Ahmed, de cinco anos, que foi atendido com queimaduras graves. — Ninguém da família dele estava lá. Eu podia ouvi-lo gemendo de dor. Tentamos falar com ele, mas ele não disse uma palavra.
Ahmed foi reconhecido pela avó dez dias depois, e ainda sofre os efeitos físicos das queimaduras, que o deixaram na UTI por duas semanas, e os impactos psicológicos que provavelmente o acompanharão pelo resto da vida. Segundo a avó, Samira, ele quase não fala e tem medo de qualquer tipo de barulho.
Dentro da tragédia humana em Gaza, Ahmed é um dos poucos que conseguiram se reencontrar com parentes próximos. E com mais de 11 mil desaparecidos desde 2023, o reencontro de familiares são tarefas extremamente complexas e frustrantes.
— As pessoas estão no limbo: elas não sabem se seus familiares estão vivos, se estão feridos ou no hospital, se estão presos sob os escombros ou se os verão novamente — disse à BBC Sarah Davies, da Cruz Vermelha Internacional.
A organização afirma que 8,3 mil casos de separações de famílias foram reportados, e apenas 2,1 mil concluídos, mas apenas algumas dezenas de reuniões ocorreram. O Unicef revelou à BBC que conseguiu unir apenas 63 crianças a seus pais ou parentes próximos como parte de um programa iniciado em março, o que nem sempre significa que elas ficarão com eles em um novo lar.
— No meio de um conflito, é comum que famílias extensas cuidem de crianças que perderam os pais. Mas atualmente, devido à grande falta de comida, água ou abrigo, famílias extensas estão angustiadas e enfrentam desafios para cuidar imediatamente de outra criança, pois elas próprias estão lutando para cuidar de seus próprios filhos e familiares — disse Jonathan Crickx, revelando que alguns menores retornam para abrigos mesmo após a identificação de seus parentes.
A presença militar israelense no enclave, dividindo o território e impedindo a livre movimentação dos civis, é outro complicador.
Em entrevista à BBC, Kawther al-Masri disse ter descoberto que três de suas netas, além de um menino de um ano de idade, eram as únicas sobreviventes de um bombardeio à casa onde moravam com os pais. Por meses, com o apoio do Unicef, ela tentou trazer as crianças para o acampamento onde vive no sul de Gaza, o que incluía uma burocrática travessia pelos postos de controle israelenses. A história foi uma das raras a ter um final feliz, apesar do luto pela perda de três parentes.
— Eu não sabia quem abraçar primeiro! A primeira que abracei foi Jana e depois Zeina. Eu a beijei e abracei — disse à BBC. — Elas estão em choque. Não importa o quanto tentemos distrair as meninas e evitar falar sobre a guerra, de vez em quando elas se perdem em pensamentos.
Nos primeiros dias da guerra, Abdallah mandou a mulher, que estava grávida, e os três filhos para o sul de Gaza, em busca de uma relativa sensação de segurança, e permaneceu no norte. Em junho, ele recebeu a notícia de que todos, com exceção de dois filhos, tinham morrido. Dois meses depois, ele recebeu a notícia de que os meninos estavam a caminho do norte de Gaza para encontrá-lo.
— Eu os esperava ansiosamente. Todos os dias eu ansiava por abraçá-los, ver sua mãe e seu irmão. Mas essa era a vontade de Deus. Sua mãe foi martirizada e seu irmão também. Eu rezo para que Deus me reúna com o resto dos meus filhos em segurança — disse Abdallah, citado pela rede CNN.
Além das reuniões com as famílias, Jonathan Crickx aponta que a geração que cresceu em meio à guerra em Gaza precisará de apoio psicológico. Nas declarações à imprensa, ele afirmou que, antes do conflito, meio milhão de menores de idade precisavam de algum tipo de tratamento psicossocial. Hoje, são mais de um milhão, praticamente todas as crianças e jovens que vivem no enclave.
— Essas crianças não têm nada a ver com esse conflito. No entanto, elas estão sofrendo como nenhuma criança deveria sofrer. Nenhuma criança, seja qual for a religião, a nacionalidade, a língua, a raça, nenhuma criança deveria ser exposta ao nível de violência visto no dia 7 de outubro, ou ao nível de violência que testemunhamos desde então — concluiu.